Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Lizzie (2018): uma visão feminista para um crime centenário

A famosa história sobre um crime nunca resolvido ganha uma perspectiva feminista, mas se perde numa adaptação desinteressante, apesar das boas atuações das protagonistas.

Há certos casos de crimes que, por motivos diversos, chamam bastante atenção popular e caem no debate público durante muito tempo. Na história recente brasileira, temos como exemplos o caso Richthofen, o infanticídio do casal Nardoni e o assassinato da atriz Daniela Perez. De maneira semelhante, um assassinato duplo ocorrido em 1892 nos Estados Unidos causou comoção nacional e, apesar de ter sido levado efetivamente a julgamento, sua controvérsia invadiu o campo das artes e inspirou peças, livros e filmes, como este intitulado “Lizzie” e estrelado por Chloë Sevigny (“Meninos Não Choram”) e Kristen Stewart (“Personal Shopper”).

A produção dirigida por Craig William Macneill (“The Boy”) reproduz o fim da era vitoriana, momento marcado pela difusão da energia elétrica como fonte de iluminação, pela introdução das redes telefônicas, pelos assassinatos de “Jack, o Estripador”, e também pelas mortes do pai e da madrasta de Lizzie Borden, interpretada por Sevigny no filme que conta a história em torno do crime. De acordo com o relato policial e com a sequência introdutória do longa, ao chegar em casa, Lizzie encontra os corpos de Andrew (Jamey Sheridan, “Spotlight – Segredos Revelados”) e Abby Borden (Fiona Shaw, a tia Petúnia dos filmes “Harry Potter”), fato corroborado pela empregada Bridget, que limpava janelas no lado de fora da casa e cujo papel é defendido por Stewart.

Lizzie é a filha mais nova de Andrew, porém, de acordo com os valores repressivos da época, já está velha demais para ser considerada para casamento e frequentar eventos sem a companhia de um homem. Para complicar, Lizzie é uma mulher dura, independente, que não se importa em sair sozinha e que valoriza a leitura. Segundo ela, mulheres precisam estudar, os homens não. Essa resistência feminista é um dos aspectos que trazem o interesse contemporâneo para a história e, num segundo plano, está a construção do relacionamento entre Lizzie e Bridget.

A narrativa do filme vai até seis meses antes do crime, quando ameaças a Andrew começam a chegar por cartas anônimas e a personagem de Kristen Stewart procura emprego na casa dos Borden. Não demora muito para a empregada encontrar a vilania do pai de Lizzie e a vista grossa de Abby em relação às atitudes do marido. Os tipos de violência que Bridget e Lizzie sofrem na casa dos Borden aproximam as personagens e justificam, perante os espectadores, o assassinato do casal por quem quer que seja o responsável. Nos fatos que inspiraram o roteiro, a justiça nunca determinou a autoria do crime. Entretanto, “Lizzie” se posiciona a partir do ponto de vista das protagonistas e ilustra uma das teorias por trás das atrocidades.

Apesar da trama de ameaças de morte e de disputa por herança entre os personagens, “Lizzie” não fomenta um mistério do tipo “quem matou?”, preferindo simplesmente acumular razões para que o crime seja cometido e preterindo até o romance entre as protagonistas, que não é construído de modo a tornar o relacionamento como centro da história. Por causa disso, os elementos de gênero do longa o afastam do suspense romântico e, pela ambientação e pelas cenas de violência e tortura psicológica, o aproximam do horror biográfico. Como fator positivo, muito mais sutil que a direção de arte e o figurino está o design de som do filme, que cria um clima de pesadelo em torno da protagonista e amplifica subjetivamente suas dores de cabeça e ataques convulsivos constantes.

Como uma mulher à frente do seu tempo, Lizzie é vista pelo pai como um ser abominável, e é justamente assim que o filme também retrata seus personagens masculinos sórdidos e unidimensionais, fazendo com que os sentimentos de revolta dos espectadores sejam muito maiores que qualquer outra emoção pretendida pela direção. A partir do momento em que a história entrega a morte de Andrew e a vingança da plateia é saciada, diminui-se consideravelmente o interesse pelo desfecho da trama e pelo destino das protagonistas.

As jornadas de libertação de Lizzie e Bridget são até bem sustentadas por Chloë e Kristen, mas sofrem pelas ausências de uma direção interessante e de uma unidade temática à obra. Até mesmo o olhar feminista de “Lizzie” se perde no maniqueísmo da trama e na rasa relação entre as mulheres. Como produtora e pelo carinho da atuação que Chloë Sevigny oferece à personagem-título, fica a sensação de que um filme diferente e melhor existia no papel, mas infelizmente se perdeu na sala de edição.

William Sousa
@williamsousa

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