Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Homem-Aranha no Aranhaverso (2018): os privilégios da animação

Buscando levar uma nova versão do Homem-Aranha para o grande público, a Sony investe numa animação competente e divertida, reforçada por personagens carismáticos e, se depender da qualidade, tem tudo para dar certo.

Quando se considera o potencial dos quadrinhos para o cinema, cada vez mais parece que live-actions são as melhores escolhas. Colocar atores para viver personagens amados por milhares de pessoas nas páginas das HQs tem dado ótimos retornos aos estúdios. Porém, isso não significa que não haja espaço para investir em outros formatos. E a animação (tão comumente negligenciada pelos estúdios nesse sentido) surge como um diferencial por possuir vantagens tão próprias que seria impossível de serem contempladas por uma obra com atores reais, como “Homem-Aranha no Aranhaverso” tão bem nos mostra.

O filme adapta o universo Ultimate da Marvel, numa realidade onde Peter Parker (Jake Johnson, “Te Peguei!”) já é um herói consagrado, e um garoto chamado Miles Morales (Shameik Moore, da série “The Get Down“) é picado por uma aranha radioativa. Enquanto tenta lidar com seus novos poderes, ele descobre que o Rei do Crime (Liev Schreiber, de “Ilha dos Cachorros”) está tentando abrir um portal entre dimensões para trazer sua falecida esposa para perto dele. Com Peter Parker morto, cabe a Morales impedir que o Rei do Crime execute seu plano. E, para isso, ele irá contar com outras cinco versões do cabeça de teia.

Esse uso de personagens “cópias”, que existem em diferentes universos, é algo que os quadrinhos demonstram ter um particular interesse. Porém, ao público que não está acostumado com tal abordagem, é um conceito que pode causar confusão. Mas aqui, o recurso, além de bem explorado, é introduzido de maneira simples e bem-humorada. Se há um incômodo num primeiro momento, a explicação utilizada na narrativa é simples e pouco expositiva, exigindo que o público se envolva com a trama para entender porque um novo Peter Parker apareceu na tela. O acerto do roteiro nesse sentido é mais evidente, uma vez que a própria trama gira em torno do multiverso.

E toda essa ação é ilustrada com uma animação impecável. Toda a arte do filme é bem finalizada e apresenta traços que estão constantemente retomando a experiência dos quadrinhos, porém sem se limitar ao formato. Não estamos diante de páginas animadas, mas de uma adaptação que explora cada detalhe da fonte original, ao mesmo tempo que faz-se valer das peculiaridades de um longa animado. O resultado está nos pequenos detalhes que surgem na tela, seja nos traços da animação, no uso de balões para sugerir os pensamentos confusos de Miles Morales quando ainda não sabe utilizar seus poderes, ou na forma como o terceiro ato é concebido.

E é neste momento que podemos contemplar o que há de melhor nesta animação. O uso do multiverso é explorado de maneira envolvente durante a batalha no clímax do filme. Além de ser visualmente maravilhosa, a sequência é condizente com a proposta apresentada pelo longa, e por já ter sido explorada na abertura, não gera dúvidas ou confusões, permitindo que a atenção esteja focada na ação.

Com tudo isso, “Homem-Aranha no Aranhaverso” já seria um ótimo filme pela coragem de utilizar um conceito pouco conhecido por quem não tem o hábito de ler HQs, através de um belo exercício visual. Porém, é necessário destacar também as dublagens (aqui referindo-se às originais) dos personagens. Os atores realizam um trabalho excepcional, dando vida à animação com naturalidade. Luna Lauren Velez (“A Primeira Noite de Crime”) como Rio Morales e Mahershala Ali (“Moonlight: Sob a Luz do Luar”) como o tio Aaron são dois destaques por conseguirem oferecer aos personagens características únicas reforçadas pela voz.

Mesmo com uma narrativa que eventualmente se beneficia de algumas coincidências, “Homem-Aranha no Aranhaverso” é uma das melhores adaptações que o cinema já fez das HQs. O longa prova que uma animação consegue ser tão atrativa quanto qualquer outro formato, desde que possua um bom roteiro. Contando com a tripla direção de Peter Ramsey (“A Origem dos Guardiões”) e dos novatos Bob Persichetti e Rodney Rothman, há diversas camadas aproveitadas tanto para fazer a trama avançar quanto para desenvolver o personagem. O fato de Miles Morales ser um dos melhores heróis já criados pela Marvel certamente ajuda, porém seria insuficiente se a obra não conseguisse se sustentar sozinha. Talvez estejamos testemunhando aqui o nascimento de um novo paradigma para os filmes de herói. Se for o caso, será muito bem-vindo.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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