Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Hostis (2018): um faroeste moderno que brilha por conta das atuações

Brincar de faroeste era algo comum para as crianças nas décadas passadas, com os vaqueiros como mocinhos e os índios como vilões. Mas o filme mostra que as coisas não eram exatamente assim.

O faroeste nasceu quase que junto ao cinema. “O Grande Roubo do Trem”, com seus inventivos 12 minutos de duração, foi lançado em 1903, somente oito anos depois da criação do cinematógrafo pelos irmãos Lumière. De lá pra cá, o gênero foi se desenvolvendo como um dos mais importantes para o cinema estadunidense em específico, e para a sétima arte como um todo. Diversos diretores revisitam a temática usando uma história sobre o passado para falar sobre o presente. É exatamente isso que ocorre em “Hostis”, escrito e dirigido por Scott Cooper (“Aliança do Crime”).

A história acompanha o capitão Joseph Blocker (Christian Bale, de “A Grande Aposta”), que é obrigado a escoltar o chefe condenado Falcão Amarelo (Wes Studi, de “Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola”) e a família dele, do Novo México para o estado de Montana. Seria somente mais um dos trabalhos do capitão, caso ele não tivesse sido o responsável pela prisão do chefe, hoje com câncer, que recebeu o direito de retornar para sua terra após cumprir vários anos de prisão. Surgem no caminho muitas adversidades, bem como Rosalee Quaid (Rosamund Pike, de “7 Dias em Entebbe”), uma vítima da violência causada por uma das tribos indígenas, que acrescenta novas camadas à história.

Joseph Blocker dedicou quase 20 anos de serviço a caçar, matar e prender os nativos americanos. Logo, levar um de seus rivais, garantindo a sua segurança, por quatro estados norte-americanos não é uma tarefa fácil, nem do ponto de vista logístico, nem da moral do personagem. E esse conflito fica evidente na atuação de Christian Bale, que age como se tivesse algo entalado na garganta o filme inteiro. A performance é forte e evidencia uma raiva contida que parece somente crescer no interior do personagem, estourando em momentos de violência crus e diretos. E é Blocker também quem protagoniza os diálogos mais impactantes com a sua companhia, revelando sempre um pouco mais de sua persona complexa.

Blocker é acompanhado por um grupo heterogêneo de soldados. Há outro veterano cansado, um soldado negro que se destaca pelo fato da história se passar menos de 30 anos depois da abolição da escravidão nos Estados Unidos, além de novatos claramente despreparados para a missão. A companhia deve percorrer algo em torno de mil quilômetros por um caminho com diferentes relevos e cenários, belamente fotografados por Masanobu Takayanagi (também de “Aliança do Crime”), em um de seus melhores trabalhos. Há uma sucessão constante de montar e desfazer acampamentos e seguir longos trajetos que colocam os soldados e os índios como parte da paisagem, e em outros momentos diminuídos pela grandeza da natureza.

A caminhada mostra que o ser humano é hostil de maneira geral. Do ponto de vista dos soldados, os índios são o violento inimigo que impede o desenvolvimento. Já pela ótica dos nativos norte-americanos, os vilões são os desbravadores que tomam para si as terras onde eles viviam. Todos são hostis de maneiras e intensidades diversas. E, tanto no cenários dos EUA como no do Brasil, isso serve de metáfora para divergências políticas que levaram a momentos de violência em ambos países.

Se no papel de Bale ele se retrai, a atuação de Rosamund Pike como Rosalee Quaid consegue ser exatamente o oposto. Seu papel como a mãe de uma família destruída é cheio de rompantes que a atriz mostra dominar como ninguém. Ela exala a dor da sua personagem e não poupa em momento algum suas lágrimas ou seus pulmões. Ela rouba a cena para si sempre que aparece, mesmo quando divide a tela com o protagonista de Bale.

O diretor Scott Cooper mostra ter ótimas referências bebendo muito da fonte máxima do faroeste John Ford, mas entrega uma verdadeira montanha russa, daquelas que preparam muito o terreno e não entregam uma emoção equivalente. Isso, aliado ao fato do filme apresentar uma transição dos pontos de vista dos personagens pouco coesa com suas visões iniciais, prejudica a obra e a impede de ser o grande faroeste que a fotografia e o trio de atores principais trabalharam para que ela fosse. Entre os acertos e erros, “Hostis” se coloca como uma faroeste moderno e com qualidade acima da média das produções.

Hiago Leal
@rapadura

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