Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Encantado (2018): o príncipe reimaginado à custa das princesas

Apesar do arranjo pop, a animação que propõe desconstruir o mito do príncipe faz isso mediante suas personagens femininas e o resultado não é carismático o suficiente para sustentar a diversão.

E se no mundo dos contos de fadas o príncipe encantado fosse uma só pessoa e saísse prometendo “felicidade para sempre” para as diversas princesas ao mesmo tempo? “Encantado” explica essa possibilidade por uma maldição lançada sobre o príncipe Philippe (voz original de Wilmer Walderrama, “Nação Fast Food”, e do dublador Leo Cidade na versão brasileira) que o deixa irresistível para qualquer mulher que troque olhares com ele. Com o charme elevado ao extremo, Philippe só quer que toda garota se sinta como uma princesa, mesmo que isso cause muita confusão e apesar de ainda não saber o que é amor de verdade.

Dentre as vítimas ilustres do encanto de Philippe estão as clássicas princesas Cinderela, Branca de Neve e Bela Adormecida, cujas vozes emprestadas são das cantoras Ashley Tisdale, Avril Lavigne e G.E.M. respectivamente. Elas introduzem as músicas do filme com tempero pop e representam gerações de meninas, mas as competitivas princesas são só coadjuvantes nesta história. Demi Lovato (“Camp Rock”) é quem dá a voz para a protagonista Lenore (Larissa Manoela, de “Fala Sério, Mãe!”, na versão brasileira), uma solitária, habilidosa e ousada ladra de tesouros, que possui o status de “princesa em potencial” por falar com o passarinho vermelho que a acompanha como cúmplice nos roubos.

Por tradição, o príncipe precisa sair numa jornada e vencer três grandes desafios, mas seu problema maior é enfrentar as últimas consequências do feitiço: se ao completar 21 anos ele ainda não tiver dado um beijo verdadeiro, todo o amor desaparecerá do reino. Mesmo com pouco tempo para o aniversário, Philippe é otimista e está certo que encontrará a peça que falta durante o caminho. É claro que o destino colabora e coloca Lenore na cola do príncipe, porém, assim como acontece em “Mulan”, a garota precisa se disfarçar de homem, e pior, seu coração é imune ao charme de Philippe.

Como necessidade da narrativa, é interessante notar os artifícios que o filme oferece aos protagonistas para saber o que passa na cabeça deles sem ter que construir cenas complexas. Enquanto Lenore desabafa seus pensamentos para o passarinho, o tempo da ação desacelera quando o diálogo interno do príncipe precisa ser dito em voz alta. Pausas, “câmera lenta” e volta no tempo são técnicas que buscam afastar a obra da estética clássica do conto de fadas animado assim como o uso das diversas subversões que o longa traz aos papéis femininos e masculinos e das muitas canções de ritmo pop. Esses elementos aproximam “Encantado” à proposta original de “Shrek”, mas estão longe de possuir o espírito da produção da Dreamworks. Além do produtor John H. Williams, a participação de John Cleese como ambos Fada Madrinha e Carrasco é mais um elo com os filmes do ogro verde, já que o comediante também fez a voz do Rei nessa franquia.

A história do príncipe que não é tão prendado quanto a lenda propõe ser pró-feminista ao criticar as fábulas e reavaliar o mito da princesa indefesa pela personagem de Lenora, mas não parece tratar as outras personagens de acordo. “Encantado” faz piada com uma estrábica, retrata as princesas clássicas como garotas problemáticas, justifica a maldade da vilã como recalque, apresenta indígenas como “comedoras de homens” gigantes e caracteriza como obesa a criatura que mais deseja o príncipe para, supostamente, provocar cruéis risadas.

Mesmo sugerindo novas reflexões sobre os papéis de príncipe e princesa, “Encantado” não abandona o valor clássico do casamento como objetivo nem da promessa de felicidade eterna. As canções presentes dão um ar de musical juvenil contemporâneo ao filme e são positivamente distintas as composições da cantora Sia, que também está no elenco como a voz da personagem Meio-Oráculo. Mas todos os ingredientes apresentados não são suficientes para montar uma história coerente com sua moral e deixa para divertir somente os espectadores menos exigentes.

William Sousa
@williamsousa

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