Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Rasga Coração (2018): conflitos e sentimentos de empatia que atravessam gerações

Uma obra atemporal que se renova sempre que houver pessoas dispostas a sair nas ruas e lutar pelo simples direito de ser quem elas querem ser.

O Brasil já viu diversos líderes autoritários ao longo do tempo tentando reprimir uma voz que não pode ser calada. Eles podem mudar de ramo de atuação ou a forma de impor suas regras, mas não conseguem mudar a essência de seus ideais que buscam sempre impedir os direitos do povo e reprimir suas escolhas. Mas como não poderia deixar de ser, o Brasil também vê a cada nova geração jovens inquietos que estão dispostos a lutar por aquilo que acreditam, seja pela liberdade de se vestir da forma como gostam ou pelo direito de escolher quem será o governante do país.

O longa “Rasga Coração” nos mostra o drama de uma geração revolucionária do passado que se vê frente as batalhas da nova geração com pontos de vista que compartilham os mesmos ideais, porém com uma forma mais analítica e menos reacionária dos mais velhos. Estes agora enxergam a nova luta por uma perspectiva diferente, fazendo com que repensem as ideias de trilhar novamente o caminho da baderna e passem a acreditar que abordar uma posição mais amistosa possa ser a maneira correta para ser ouvido sem acarretar grandes perdas para sua causa.

Adaptada da obra de Oduvaldo Vianna Filho, que foi um marco para o teatro na década de 1970, o longa dirigido por Jorge Furtado (“O Homem que Copiava”) traz de forma brilhante para as telonas a história da peça já tão aclamada pela crítica, nos apresentando conflitos e batalhas entre pai e filho, ambos revolucionários de suas épocas, mas que acabam esbarrando nas crenças e no ego um do outro. A trama se passa em duas linhas de tempo, onde por um lado vemos Luca (Chay Suede, “O Banquete”) lidar com as batalhas de um adolescente revolucionário que briga por seus direitos e acaba sendo acuado pelo regime autoritário de uma escola que tenta impor regras das quais ele e sua namorada Mil (Luisa Arrais, “Reza a Lenda”) discordam.

Do outro lado, viajamos pelas memórias do passado de seu pai, Manguari Pistolão (Marco Ricca, “As Duas Irenes”), que apresentam o background do protagonista através da atuação de João Pedro Zappa (“Gabriel e a Montanha”), que interpreta de forma competente o jovem revolucionário de antigamente que estava aberto para experimentar o “novo” sem deixar de lado seus princípios rebeldes. Ele enfrentava o governo e os militares em plena ditadura militar, batendo de frente até mesmo com os ideais de seu pai, o “linha-dura” 666 vivido por Nelson Diniz (“A Superfície da Sombra”), e tudo isso contando com a ajuda do inconsequente, bem-humorado e as vezes irracional Lorde Bundinha (George Sauma, “Uma Quase Dupla”),  que entre a vida boêmia e a participação nos protestos, tenta seguir a carreira de ator. Com um humor e gosto pela vida de dar inveja, Bundinha é brilhantemente interpretado por George, que por várias vezes tira uma risada ou outra do telespectador com suas atitudes irreverentes.

Manguari é um cidadão brasileiro simples que luta para proporcionar um futuro melhor para seu filho, sonhando com dias melhores para sua família. Pai e marido solidário, ele é um homem amargurado que não se deixa vencer pela imensa saudade que sente dos amigos de sua juventude agravada pelo momento político do Brasil, o qual ele acredita ainda que pode ser melhorado. A harmonia com a vida real que a obra proporciona traz à tona a ideia de que sempre esbarraremos nossas experiências e aprendizados nas dos nossos genitores. Tanto o jovem vivido por Chay Suede – que representa a nova geração -, quanto Marco Ricca, entregam personagens palpáveis, pessoas das quais podemos olhar para seus dramas e enxergar o mundo através de seus olhos.

O jovem Luca está passando por uma fase de descobertas e começa a enfrentar questionamentos que ele não sabe expressar. Ao ser confrontado pelas autoridades de sua escola devido a seu estilo de vida, ele se vê obrigado a lutar por aquilo que acredita, tendo o apoio de seu pai. Mas ainda que ele o ame e confie em seu modelo de revolução, Luca crê que esse padrão do passado já não se aplica ao presente, fazendo com que seu personagem se questione ainda mais e comece a ouvir os ideais mais agressivos de sua namorada Mil, que acredita que a única forma de ser ouvida é através de atitudes drásticas e por vezes violenta. Quem não gosta muito dessas atitudes é Nena (Drica Morais, “Verdades Secretas”), a esposa de Manguari, uma descontente dona de casa que se tornou uma mãe triste e confusa, que quando se vê acuada e perdendo seu espaço exige uma atitude mais dura de seu marido para lidar com o novo modo de vida do filho.

A narrativa nos faz criar uma enorme empatia com os personagens da trama, que vivem suas vidas de forma simples enquanto se preocupam com seu próprio futuro e o futuro do pais. Até mesmo enquanto enfrentam batalhas infindáveis, pois dentro de cada um deles existe a crença de que um dia a vida será melhor para todos, ainda que essa “melhora” venha de sacrifícios e perdas que podem demorar a chegar. O diretor Jorge Furtado conta com uma equipe experiente e entrega um ótimo filme com uma excelente montagem, trazendo passado e presente de forma que a história vai se completando, e fazendo com que as quase duas horas de exibição não sejam assim tão cansativas. “Rasga Coração” é uma obra homônima e que enquanto houver pessoas dispostas a se rebelar contra lideres autoritários, será cada vez mais atual.

Diego Souza
@diegoosouz

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