Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Mulan (1998): na alma sempre uma chama acesa [CLÁSSICO]

Mais valioso do que apenas diversão, o musical da Disney adapta um poema chinês para entregar uma bela obra com canções soberbas numa história sobre honra, dever, respeito e igualdade.

Mulan” foi um dos últimos filmes do período conhecido por Renascimento da Disney, que teve início em 1989 com “A Pequena Sereia” e terminou em 1999 com “Tarzan”. Durante esses anos, o estúdio de animação voltou a fazer musicais baseados em contos e histórias mais conhecidas, e marcou uma era de estrondosos sucessos de bilheteria. No final da década de 1980, a Disney criou um estúdio de animação em Orlando, com o objetivo de produzir curtas, mas acabou realizando trabalhos para outros longas animados da Casa do Mickey. Na época, o autor de livros infantis Robert D. San Souci era consultor da Disney e sugeriu a adaptação do poema chinês “A Balada de Hua Mulan”. Daí nasceu o primeiro longa totalmente animado no local, com Souci como um dos inúmeros escritores do projeto.

A obra abre com a protagonista tentando ser aprovada pela casamenteira da vila, pois ficar solteira é motivo de desonra para as famílias da época. Não levando jeito para tais obrigações, ela falha e se ressente, mesmo tendo um pai bastante compreensivo e amável. Sua alma dividida é muito bem expressada por uma das mais famosas músicas do longa, “Reflection”, onde a direção acerta em cheio na cena em que ela retira a maquiagem de metade do rosto, ilustrando seus dois lados em conflito.

Se Mulan se mostra confusa por não conseguir se encaixar nos padrões daquela sociedade, não há a menor hesitação em mergulhar no que seria desonra total a fim de proteger o pai idoso e debilitado, convocado para a guerra contra os hunos por ordens do imperador. Para evitar o que seria a morte certa do patriarca da casa, ela foge durante à noite com sua armadura e espada após a emblemática sequência em que corta os cabelos. Jogada de mestre da direção ao espelhar a cena de seu rosto dividido ao meio mencionada acima quando ela segura a espada a sua frente, mas seu rosto agora não possui maquiagem. Ela abraçou seu eu interior e, segura de sua decisão, está pronta para seguir o caminho que escolheu.

Paralelo a tudo isso, os espíritos ancestrais da família decidem enviar um guardião para proteger a protagonista. Quem acaba indo é o dragão Mushu, enganando os ancestrais, que haviam decidido por outro. Ambos agora precisam se provar, pois não há volta. Mushu, aliás, se prova ótimo e não fica devendo ao gênio de “Aladdin” como coadjuvante cômico cheio de falas espirituosas e, com o perdão do trocadilho, geniais. Boas falas, aliás, é o que não falta. O roteiro acerta em cheio ao balancear o tom de comicidade gerada a partir da situação peixe fora d’água de Mulan e o tom mais sério e belicoso ao se lidar com os hunos.

Outro grande acerto do filme é possuir poucas músicas. O último número musical festivo é bruscamente interrompido porque os personagens dão de cara com uma vila queimada pelos adversários, logo encontrando o campo de batalha com vários soldados mortos. A guerra chegou, e não há nada de alegre nisso. O clima sombrio e de perigo constante também é valorizado pelo vilão. De visual ameaçador com olhos negros, voz grave e porte imponente, Shan-Yu transborda ameaça, ira, desprezo e sede de poder, nada dos vilões bufões que a Disney costuma oferecer. A sensação do fim iminente é palpável.

Neste quesito, o filme pode não ter mais números musicais para impressionar, mas ainda consegue deixar queixos no chão na formidável e assustadora cena em que a tropa de Mulan se depara com o exército dos hunos. O avanço da cavalaria inimiga na montanha nevada faz excelente uso de técnicas de computação 3D, e a cena, mesmo décadas depois, impressiona por sua qualidade visual e narrativa, gerando momentos que ao mesmo tempo estarrecem o espectador e engradecem sua protagonista. A animação em si é inspirada em aquarelas chinesas, com traços mais simples do que outras obras da Disney daquela época, e tal sutileza no design dos cenários e personagens auxilia ainda mais a criação da ambientação correta.

A trilha é magnífica e um ótimo trabalho de Jerry Goldsmith (que trabalhou em vários longas e séries de “Star Trek”). Apesar de poucos números musicais, eles acontecem nos momentos certeiros para apoiar a narrativa, seja explorando os fantasmas da alma da protagonista, seja numa montagem de treinamento que transforma o batalhão de camponeses em soldados eficientes e unidos. E há de se elogiar a Disney aqui em adaptar tudo isso para português. Não só a tradução respeita o espírito de cada canção e as rimas se mantêm deliciosas de ouvir, como também há a preocupação em procurar intérpretes que entreguem uma boa mistura de voz e alma similares às dos personagens que interpretam.

Acima de tudo, Mulan é um filme que empodera mulheres sem tons de lição de moral. Ao fugir do teor sermônico, não só o roteiro se mantém verossímil, como a própria mensagem acaba sendo muito mais significativa no quesito educativo. A ideia de igualdade e respeito entre pessoas de todos os sexos é atemporal, mais um elemento que torna a obra bem mais valiosa do que apenas entretenimento.

Com belo visual, músicas divertidas e tocantes e uma protagonista cativante, o longa conta uma heroica história sobre honra, dedicação, respeito e igualdade. Diversão de alto nível para todas as idades, Mulan definitivamente merece seu lugar como um dos grandes clássicos da Disney.

Bruno Passos
@passosnerds

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