Numa antologia de seis histórias, os irmãos Coen transitam entre gêneros cinematográficos distintos e discorrem sobre a humanidade durante a hostilidade e desamparo do faroeste.
Qualquer nova obra dos irmãos Ethan e Joel Coen (“Ave, César!”) deixa os fãs de cinema em polvorosa. Afinal, foram muitos trabalhos excelentes na carreira dos dois, que sempre souberam explorar a humanidade em situações inusitadas e perigosas. Tendo esse gosto, não é de surpreender que eles já usaram a temática do faroeste antes, tempos difíceis onde as pessoas tinham que saber se defender, já que o perigo podia vir de qualquer lugar. Depois de dois ótimos filmes sobre este período (e alguns outros com semelhanças peculiares), seu terceiro projeto chega pela Netflix na forma de seis histórias unidas em um único só longa, “The Ballad of Buster Scruggs”.
A única coisa em comum entre os seis contos é que se passam no Velho Oeste e envolvem a violência com a qual se convivia na época. Há contos cômicos e outros mais nefastos, mas todos têm atores muito imersos, diálogos incríveis e fotografia de cair o queixo.
A primeira história é a que leva o nome do longa e seu protagonista é o próprio Buster Scruggs (Tim Blake Nelson, de “Colossal”, solto e se divertindo horrores). Aqui vemos no que é praticamente um musical (!) uma alegoria às lendas de gatilho rápido da época, dando glamour às figuras míticas ao mesmo tempo que ilustra que as próprias inspiram outras a tomarem seus lugares. Scruggs é um personagem delicioso de acompanhar, que entra em cena cantando em seu cavalo ao passar por um vale e usa o eco do mesmo para fazer backing vocal de sua própria música. Se já não bastasse sua cantoria e vestimenta para destacá-lo, ele quebra a quarta parede e usa seu carisma para conquistar o espectador de vez, que fica apenas no desejo de que a história dele fossa um longa-metragem.
O segundo conto é chamado “Perto de Algodones”, e também tem uma pegada cômica de um fora-da-lei (James Franco, de “O Artista do Desastre”) que quer assaltar um banco. Franco cai bem no papel que pede tons irônicos diante do absurdo sistema judiciário da época, mas impagável mesmo está Stephen Root (“Alma da Festa”) como o caixa do tal banco. Figura excêntrica e engraçada, é mais um ótimo personagem criado pelos Coen.
O tom muda drasticamente no terceiro conto chamado “Vale Refeição”. Aqui temos um artista (Harry Melling, o Dudley da cinessérie “Harry Potter”) e seu empresário (Liam Neeson, de “O Passageiro”) viajando de cidade em cidade para ter seu ganha pão. Melling traz a melancolia na dose certa para alguém que não tem braços ou pernas e precisa fazer a mesma apresentação todos os dias, sem contar sua total dependência do inescrupuloso Neeson. A fotografia, que tem tons quentes nas duas primeiras partes, aqui assume tons azuis, verdes e cinzas. É tudo mais desolado e desesperançoso e a conclusão dói na alma. Entretanto, ao contrário de “Perto de Algodones”, poderia ter deixado alguns minutos no chão da sala de edição.
Chega-se então num conto em que o diretor de fotografia Bruno Delbonnel (“O Destino de uma Nação”) mergulha com vontade na vastidão da natureza do “Cânion do Ouro”, onde a vida do lugar tine com gosto, mas sai de cena rapidamente para a entrada de seu protagonista, Tom Waits (“O Livro de Eli”). Cantor e compositor de renome, ele entra e sai de cena cantando, acentuando a assinatura que traz a uma das melhores anedotas desta obra. Em atuação solo, Waits conta um pouco da história do sonho dourado do garimpo e sua tenacidade e determinação em ir até o fim. A narrativa ainda conta com sutil metáfora ao ilustrar que, nesse mundo hostil, tentar ganhar a vida pode significar cavar a própria cova.
“A Garota Nervosa” é o título do penúltimo conto e ela é interpretada por Zoe Kazan (“Doentes de Amor”). A atriz trabalha muito bem ao ostentar o olhar de perdição de sua personagem ao perder o irmão mais velho, de quem sempre dependeu, num leve espelho do machismo da época. Sem alento, ela encontra um porto seguro em Billy Knapp (Bill Heck, da série “The Alienist”, sereno e transbordando humanidade), guia da caravana em que viajam. Os dois aos poucos se aproximam num texto que aborda muito bem que ainda há genuíno carinho e sensibilidade entre pessoas nesse ambiente incerto e periculoso do Velho Oeste.
A história remanescente tem o nome de “Os Restos Mortais” onde um grupo de cinco pessoas viajando numa carruagem trocam ideias (e farpas) sobre suas crenças e meios de vida. O sol que vai lentamente se pondo até que a atmosfera sombria e sinistra de uma noite quase igual a de um filme de terror vai tomando conta e espelhando o destino de todos. Narrativa interessante, mas a verdade é que este é o conto mais fraco de todos. A Balada merecia terminar com uma nota melhor.
Ao longo dos seis contos, os Coen permeiam aspectos da humanidade naquele ambiente difícil, servindo não só como estudos da psiquê humana, como também ilustrando diversos elementos marcantes da época. Há viagens de caravana, ataques de índios, roubos a banco, artistas viajantes, pistoleiros, duelos, garimpo, caçadores de recompensa… tudo com figurinos e locações brilhantes. Misture isso à fascinante fotografia de Delbonnel, que por vários momentos captura a beleza, imponência e vastidão da geografia americana; são inúmeras as tomadas que justificariam lindos quadros, mas que também reforçam a ideia de isolamento e perigo dos que lá habitam.
Terceiro filme dos irmãos Coen com temática de fato ambientada no faroeste, “A Balada de Buster Scruggs” ilustra bem uma época que fascina, assusta e, hoje em dia, rende obras memoráveis, como as notas desta Balada.