Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Nasce Uma Estrela (2018): sobre estrelas cadentes e decadentes

Em uma apaixonante história de amor, Bradley Cooper se mostra um diretor competente, e Lady Gaga, uma estrela com muito potencial.

Retratar o mundo da música parece só não ser uma tarefa tão comum em Hollywood quanto as tramas amorosas, estas sim infinitamente reproduzidas. Mas reunir as duas temáticas costuma sempre render obras empolgantes e emocionantes, pois dispõem de munição dupla (palavras e canções) para mostrar o seu “algo a mais”. Contudo, quando duas narrativas tão características são reunidas, é bem possível que a balança penda mais para um lado. “Nasce Uma Estrela”, ainda que consiga retratar esplendidamente o mundo musical de dentro e fora dos palcos, brilha de fato ao contar uma melodramática – e poderosa – história de amor.

Antes de apresentar o nascimento do título, o filme mostra, de forma sutil e dinâmica, o quão desmoronado está Jackson Maine (Bradley Cooper, “Vingadores: Guerra Infinita”), astro do rock country. Seu vício alcoólico incontrolável o leva a um bar drag após um show, onde pode ver pela primeira vez uma performance de Ally (Lady Gaga, da série “American Horror Story”), cujo talento e voz acarretam uma paixão imediata. Desde os minutos iniciais, fica visível o quanto a obra é humana de fato, pois as interpretações e os sentimentos vistos em tela são palpáveis e facilmente críveis. Aqui, o amor é leve, como deve ser.

Após uma noite repleta de acontecimentos e conversas, Jack decide dar a Ally a tão sonhada chance de brilhar em um palco, e ainda quebrar a resistência da jovem em cantar suas próprias composições. A relação entre eles se transforma em algo sólido e forte de forma tão rápida quanto natural, pois assim como quando vemos algum amigo nosso apaixonado, o entusiasmo e a suavidade do afeto estão estampados em suas faces. E o ápice disso, claro, está na primeira performance juntos, com a lindíssima “Shallow” (“Raso”, em tradução livre). Ally se emociona ao lançar sua primeira vocalização potente, vencendo o medo através da confiança de seu par. E Jack se mostra tão tranquilo e satisfeito que a necessidade de álcool ou pílulas simplesmente se esvai.

A direção do estreante Cooper é bastante eficiente em nos imergir nos backstages e palcos de eventos super-produzidos, dando vários pontos de vista de como funcionam essas apresentações, mas sem ser didático demais. Sua guitarra é de uma presença estrondosa, em contraste com seus vocais, que nunca excedem o ponto. Somando isso às atuações singelas e ao espetáculo melodioso em que se transforma o segundo ato, é quase como se estivéssemos vivenciando uma experiência real de um show. O diretor protagonista também tem seu mérito pelo esforço no estudo e na preparação para cantar, tocar guitarra e se portar como um legítimo astro da música, um cuidado necessário para contracenar com Lady Gaga, que já dominava isso muito antes de ser escolhida para o papel.

Aliás, Gaga é outra pérola encontrada em “Nasce Uma Estrela”. Sua Ally alia inocência e carisma ímpares, além de invejáveis força de vontade e determinação. Ela é uma figura divertida e cativante, assim como responde bem sempre que precisa entregar uma atuação emocionante. Nas performances musicais é radiante, como se espera de uma estrela do porte dela. E a química com Cooper é intensa desde os minutos iniciais. Só um espectador muito exigente não se apaixona pela história e pelo casal.

É curioso notar também que a trilha sonora foi lançada bem próxima da estreia do longa, na intenção de evitar spoilers da trama. Isso reflete bem no impacto que as músicas têm na narrativa, pois além de serem apresentações pontuais, sem transformar a obra em um conjunto de esquetes musicais, sempre são um espelho dos sentimentos dos intérpretes naquele momento. Para quem ouviu a trilha antes de ver o filme, o impacto de enxergar os “porquês” de algumas letras, assim como descobrir a história delas, torna a experiência ainda mais gratificante.

À medida que a história avança, somos confrontados com várias adversidades do mundo da música. Vícios, depressão, padrões de beleza exigentes, canções engessadas e sem alma… dilemas ocasionados tanto pelo estrelato quanto pela busca por ele. Isso é algo notável no filme, que sempre mostra o paralelo entre a curva meteoricamente ascendente de Ally e a oscilante, porém sempre tendendo para baixo, de Jack. Aliás, essas oscilações no arco do cantor, que ora sucumbe aos problemas, ora se mostra resiliente graças à persistência da companheira, são um duro retrato de um relacionamento. Ainda que forte, o amor nem sempre cura tudo. Algumas feridas, especialmente aquelas responsáveis por forjar uma personalidade, são quase impossíveis de cicatrizar.

Além do mais, o filme mostra mais uma vez sua âncora na realidade ao exibir os espinhos de brigas e comportamentos abusivos tanto quanto a florida relação entre os protagonistas. Esse é talvez o grande mérito de “Nasce Uma Estrela”: mostrar o amor como um catalisador do melhor e do pior de cada um, assim como as consequências disso no outro e no ambiente em volta. E por mais que apresente clichês – afinal, é a quarta reimaginação do longa nos cinemas -, não é neles onde reside o poder da história. Sem exageros, esta é uma obra que, assim como dito de sua protagonista, tem algo a mais a dizer.

Martinho Neto
@omeninomartinho

Compartilhe