Narrativa alegórica para tempos de absurdos, Thomas constrói uma potente trama platônica que retoma aos tempos dos deuses, fazendo do Brasil um Olimpo distópico.
“O problema do Brasil é uma elite infértil” – vaticinava o antropólogo Darcy Ribeiro, fazendo coro a outros pensadores que dão como uma das causas de nossas mazelas sociais o egoísmo e a glutonice de nossas classes dominantes. Desde a colonização extrativista dos portugueses até a remessa internacional de reservas dos atuais rentistas, o Brasil sempre foi tratado como terra para se sugar, saquear, exaurir. Nesse sentido, o drama de ficção “O Banquete“, com roteiro e direção assinados por Daniela Thomas (parceira de Walter Salles em filmes como “Terra Estrangeira” e “Linha de Passe”), atualiza as causas dessa nossa desdita, com um roteiro sujo, de cenas feias e passagens desagradáveis.
“O Banquete” segue inspiração filosófica da obra de Platão, escrito por volta de 380 antes de Cristo. Antes, porém, também segue acontecimentos do drama brasileiro na época do governo Collor, nos anos 90. A trama gira, portanto, em torno de um jantar portentoso que é, ao mesmo tempo, a celebração de um casamento e a última ceia de um homem. O homem é Mauro (Rodrigo Bolzan), que imita a figura de Otavio Frias Filho, diretor do jornal Folha de S. Paulo, falecido recentemente, que, no auge da crise daquele governo, assinou uma carta pública ao (ou melhor, contra) o presidente. O tom mordaz acentuou a crise que levou ao Impeachment de Collor.
Da mesma forma como “O Paciente: O Caso Tancredo Neves” (2018), o filme de Thomas não poderia ter melhor timing. Novamente diante de tempos de instabilidade política, o pano de fundo explosivo da narrativa reverbera sobre nossas crises atuais, embora desenvolva-se apenas até certo ponto, desviando-se em dado momento para um tom de melodrama familiar. Porém, se decepcionarão aqueles que esperam por um filme mais diretamente engajado, poderá agradar aqueles que apreciam histórias focadas em personagem e que dão espaço às atuações. Assim, permitindo-se a alguns longos e elaborados diálogos, nascem aqui algumas passagens memoráveis.
Agregando uma direção viva, que movimenta-se entre os personagens, um score sutil e misterioso e um cenário mínimo, o longa adquire ares de John Cassavetes, em filmes como “Faces” (1968), explorando o absurdo das relações humanas a partir do encontro de personagens com muito a dizer, em ambientes representativos. Não à toa, estamos aqui num banquete, e é isso justamente o que Nora (a excelente Drica Moraes) reitera ao marido, Plínio (Caco Ciocler), que, bêbado, a indaga sobre o jantar: “Jantar não, meu amor. Isso aqui é um banquete.” Erudita, Nora explica que pediu à chef que criasse uma refeição inspirada no tempo dos filósofos gregos. Sua intenção era emular a ocasião em que figuras como Sócrates, Fedro e Agaton se fizeram comensais e prestaram tributo ao deus Eros, refletindo sobre o amor. Nora, assim, propõe aos convidados que naquela noite reflitam sobre o amor tendo “Baco como juiz”, embriagando-se de vinho. O problema é que Mauro está na iminência de ser preso, após as acusações contra o presidente. Ao longo da história, outros personagens vão somando a situação acentuadamente crítica, que desdobram-se em outros mal-estares entre os personagens. Ainda que nem todo papel seja necessário e alguns atores pendam soltos pela história, como Bruna Linzmeyer, ou lhes falte arco dramático, como o de Chay Suede, em geral todos compõem harmoniosamente um peripatética cena derradeira, que põe a audiência em vergonha tanto dos personagens quanto do país.
Ainda que o roteiro não seja homogêneo, quase perdendo o curso em algumas passagens e descambando num drama mais previsível, o esforço dramatúrgico de Thomas precisa ser destacado. É um filme que faz lembrar de alguns clássicos, entre eles a gravidade de “Quem tem medo de Virginia Woolf?” (1966), de Mike Nichols, mas também certa aura de fim dos tempos de “O Discreto Charme da Burguesia” (1972), de Luis Buñuel. Narrativa quase surrealista para tempos de absurdos, Thomas constrói uma potente alegoria platônica que retoma aos tempos dos deuses. Na modernidade, contudo, tudo parece contaminado. “Só tem vilões aqui, os mocinhos não foram nem convidados” – ironiza a personagem Maria (Fabiana Gugli).