Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 19 de julho de 2018

Distúrbio (2018): paranoia e cinema para todos

Filmado com celular, o longa de suspense é uma interessante experiência cinematográfica.

Totalmente rodado com as câmeras de um iPhone 7 plus, “Distúrbio” é, acima de tudo, um filme provocador. Utilizando um instrumento “caseiro” e pessoal para fazer seu cinema, sem abrir mão da estética e de takes elaborados, o diretor Steven Soderbergh (“Onze Homens e um Segredo”) reitera que o amor por fazer filmes nunca pode ser soterrado por insuficiências financeiras ou falta de aptidão com grandes aparatos.

Sawyer Valentini é uma mulher que vive perturbada por visões de um homem que a persegue. Mesmo com ordens restritivas, fugas estaduais e mudanças contínuas de trabalho, ela não consegue se desvencilhar do “vulto” que a acompanha. Sabendo que o problema pode ser uma espécie de paranoia exacerbada, Sawyer vai a procura de um profissional que possa ajudá-la, mas acaba sendo internada em uma clínica psiquiátrica à revelia. O desespero de estar presa é multiplicado quando a garota passa a ver o seu perseguidor dentro do hospital.

Claire Foy, de atuação irretocável como a inesquecível Rainha Elizabeth II da série “The Crown”, mostra que não é uma atriz de um papel só e traz aqui uma mulher perturbada, subtraída da sociedade, porém ambígua. Soderbergh faz questão de nos levar por dois atos inteiros sem saber se o que acontece com a personagem é real, ou se são só alucinações de sua mente destruída pelo medo gerado através da própria sociedade e da falta de confiança entre as pessoas. Uma participação especial de um grande astro – que não direi o nome para manter a surpresa – como um instrutor do pânico, uma espécie de professor radical da arte de desaparecer do mundo para não atrair stalkers, é por si só emblemática do ponto de vista do mundo quase psicótico em que vivemos hoje.

Apesar de ser um longa de gênero, mais especificamente um suspense, o filme embarca de cabeça em temas bastante caros para a comunidade atual, como o abuso médico, a paranoia, a falta de voz das mulheres, o uso do medo como ferramenta para a vida e também o individualismo moderno intensificado. Sawyer, além de passar parte de sua existência fugindo de um perseguidor maluco, possui um trauma de adolescência envolvendo o pai, algo que a faz se afastar do contato humano prolongado… o que mais na frente acaba cobrando seu preço.

Tecnicamente a primeira impressão sobre o longa é a de estranhamento. As imagens das câmeras de celular não se mostram muito convidativas nos primeiros takes, principalmente em ambientes abertos. Tudo fica “chapado” demais e sem vida, mesmo que o diretor sempre procure ângulos inventivos e dinâmicos para filmar. Ainda bem que tudo muda quando o ambiente passa a ficar quase que totalmente confinado ao hospital, onde as imagens naturalmente fechadas passam a integrar a história que está sendo contada. Desta forma, parece que estamos testemunhando o relato visual de um paciente do manicômio sobre a garota que acabou de chegar e que apresenta surtos contínuos de psicoses e violência.

“Distúrbio” não chega a ser um filmaço de terror e suspense, mas traz bons assuntos para discussão e comprova o talento de Claire Foy como atriz. Se existem problemas, como na já cansativa correria, pegadinhas e inúmeros finais do terceiro ato, o longa se firma como um interessante experimento de cinema. Um diretor famoso e conhecido, que abdica de ferramentas importantes e caras, somente para contar uma história. Uma boa história.

Rogério Montanare
@rmontanare

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