Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 14 de junho de 2018

A Morte de Stalin (2017): a acidez da URSS

Em um longa igualmente engraçado e agressivo, Armando Iannucci nos brinda com um exemplar excepcional do gênero do humor negro.

Tragédia e comédia, por mais contrastantes que possam parecer, são estilos destinados a caminharem juntos. E o gênero do humor negro é, de longe, o que melhor trabalha essa dualidade nos cinemas. Seja abordando críticas sociais pesadas ou questionando o horror do ódio e da violência, esta categoria não chega a tratar esses temas de forma leve, mas possui um sabor agridoce que não costuma agradar a todos. “A Morte de Stalin” é mais um ótimo produto desse modelo, capaz de nos fazer rir e, ao mesmo tempo, nos fazer indagar se realmente é certo zombar disso.

O longa conta a história imediatamente posterior à morte do ditador soviético, usando os fatos já conhecidos com algumas liberdades, porém sempre de forma bastante irônica. Essa decisão dá o tom de todo o filme, que mesmo flertando com o documentário dramatizado, sempre deixa claro que se trata de uma sátira. O que vemos em seguida é a representação de como o comitê do partido comunista definiu a sucessão de poder na URSS de forma tão estapafúrdia e mirabolante, que chega a ser impossível desacreditar que tudo aquilo aconteceu de fato.

Fazer humor ácido com qualidade é uma das tarefas mais árduas do cinema. E, felizmente, esta é a maior qualidade vista no filme. Por mais que as sequências iniciais lembrem muito mais uma comédia pastelão, cheia de trapalhadas e escatologia – algo que aconteceu também na história real -, o início da corrida pelo poder é o que mostra a verdadeira face de cada um (destaque para o termo “corrida”, que rende ótimas tiradas cômicas entre os personagens). De fato, não existem mocinhos nessa narrativa, mas apenas pessoas sedentas por prestígio e influência que farão de tudo, cada uma a sua maneira, para chegar ao topo.

As atuações são o ponto forte da obra. Chega a ser surpreendente como ninguém do elenco principal está menos do que ótimo no filme. Evidente que Steve Buscemi (“Lá Vêm os Pais”) e Simon Russell Beale (“A Lenda de Tarzan”), respectivamente como Nikita Khrushchev e Lavrenti Beria, se destacam por seus papéis de maior importância na vida real, mas ninguém perde a oportunidade de brilhar. Os diálogos, além de muito bem escritos, fluem maravilhosamente nas bocas dos atores, algo de suma importância para manter o ritmo dinâmico da produção, que não cansa o público em nenhum momento. Jeffrey Tambor (“Se Beber, Não Case! Parte III”) como Georgy Malenkov é um dos pontos altos, sendo a ovelha ingênua que todos os lobos sedentos buscam devorar. Já Jason Isaacs (“A Cura”) rouba a cena sempre que aparece como o lendário marechal de campo Gueorgui Zhukov, muito por causa de sua atuação escrachada. Entretanto, ele acabou sendo o alvo de maior polêmica entre os russos na vida real, muito devido ao “desrespeito” com a figura histórica do militar.

É verdade que o humor contido no longa é composto por situações que exigem atenção redobrada do espectador, seja em interações rápidas ou em situações levemente sutis, como quando vários aviões são programados para sobrevoarem um local no exato momento em que alguém malvisto está discursando. Também é preciso notar que boa parte das piadas não parecem ser, de fato, piadas. Isso acontece porque, além das ótimas atuações, o filme busca a todo tempo parecer com um retrato do que aconteceu de fato – afinal, o que pode ser mais absurdo, ridículo e engraçado do que a própria realidade?

Mesmo com essa preocupação, o longa acaba em alguns momentos bambeando na linha tênue entre a tragédia e a comédia. Por mais que o roteiro escrito por Armando Iannucci (“Conversa Truncada”) – que também dirige a obra – esteja sempre mostrando o horror que acontecia naquele regime, desde execuções sumárias até sugestão do estupro de menores de idade (embora, claro, não faça piadas sobre isso), a preocupação maior é em voltar sempre para o humor. Contudo, isso não acontece em alguns momentos – sobretudo na sequência final –, o que pode desagradar ou até mesmo chocar o espectador que esperava apenas uma comédia inteligente.

Conseguindo se transformar no absurdo que todos nós acreditamos ser real – russos falando com sotaque britânico?! -, “A Morte de Stalin” é um longa crítico, divertido e, acima de tudo, inteligente. Com muita crueza, sarcasmo e atuações memoráveis, a obra pede para ser assistida mais de uma vez, buscando captar todas as nuances e tiradas cômicas que (provavelmente) passarão batidas em um primeiro momento.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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