Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 05 de abril de 2018

A Luta do Século (2016): amigos e rivais

Recuperando a contenda de duas figuras históricas do boxe nacional, documentário também diverte pelo carisma dos protagonistas

A Luta do Século” é, provavelmente, o melhor documentário brasileiro que você nunca verá. Essa pequena produção baiana, dirigida por Sergio Machado (“Cidade Baixa”) acompanha a maior rivalidade da história do boxe nacional, entre os pugilistas Luciano “Todo Duro” e Reginaldo Holyfield. Nos anos 90, os esportistas encarnaram a contenda entre os estados da Bahia e de Pernambuco, em lutas transmitidas nacionalmente pela televisão. Tendo se enfrentado inúmeras vezes, nunca houve, contudo, uma vitória final ou inquestionável de um deles, e todas as lutas foram cercadas por acusações de resultados injustos ou até brigas colossais, em que a torcida tentava invadir o ringue para escalpelar um dos adversários. Assim, o documentário não só recupera a história dessa inimizade, como desvenda um microcosmo de fervor pelo boxe que se manifestava naqueles anos na região, onde Todo Duro e Holyfield encarnavam como que metonimicamente a própria identidade dos estados que representavam.

Dividido em duas partes, na primeira vemos cenas de arquivos que explicam rapidamente – talvez até demais, perdendo a oportunidade de explorar mais a fundo as implicações contextuais da rivalidade – as seis ocasiões em que Todo Duro e Holyfield duelaram. Também se explora a carreira solo dos atletas, contrastando as personalidades e as estruturas de treinamento de cada um deles. Separadamente, eles tiveram seus altos e baixos, ambos atingindo grande prestígio na carreira, tendo sido campeões sulamericanos em suas categorias. Esse dado serve para reforçar o contraste apresentado pela segunda metade do filme, que os mostra nos dias atuais e os propõe uma derradeira luta – que ambos aceitam por interesses financeiros.

Doze anos depois da última contenda, ambos os atletas, agora por volta dos cinquenta anos de idade, apresentam as marcas do tempo e de uma trajetória de porradas e contusões. Holyfield, por exemplo, que virara evangélico desde a morte da esposa e prometera nunca mais lutar, apresenta dificuldades na fala por conta dos golpes sofridos na profissão. Todo Duro, por sua vez, depois de uma vida de excessos – onde chegou a ostentar três esposas e famílias de uma só vez –, mora junto a familiares, numa residência bastante humilde. Nesse sentido, o diretor Sergio Machado disse que seu filme mostra a vida de atletas que poderiam ter chegado mais longe.

Por outro lado, é interessante vê-los empenhados para o último confronto. O gigante Holyfield é mostrado, assim, correndo pelas ruas de seu humilde bairro, sendo constantemente parado e saudado pelos fãs locais, que ainda lembram de seu tempo de ouro. Não à toa atualmente o atleta busca eleger-se vereador.

Mas o alívio cômico involuntário da produção – e que de fato é sua melhor qualidade – está na estranha relação de amor e ódio entre os dois atletas. Nos preparativos para a última luta – chamada de “a luta do século” pelos organizadores – ambos se falam amigavelmente ao telefone e até se preocupam um com o outro. Em alguns momentos do passado também parece ter sido assim, como quando Holyfield queimou 60% do corpo ao invadir uma casa em chamas para salvar os sobrinhos que acidentalmente haviam começado um incêndio, e Todo Duro organizou uma campanha para arrecadar fundos para o seu tratamento. Uma vez próximos, porém, a relação transforma-se numa profunda rivalidade predatória que, se não fossem pelas reais agressões que se dirigem em público, seria nada mais que hilária. Os homens parecem não conseguir chegar perto um do outro sem trocarem socos e agressões verbais, muitas dessas cenas ocorridas diante das câmeras, em meio a jornalistas, o que, inclusive, ajudou a aumentar suas popularidades e a mística em torno dessa rivalidade.

Assim, “A Luta do Século” é, ao mesmo tempo, um filme divertidíssimo por causa de seus personagens, ambos complexos e carismáticos à sua maneira, mas também muito relevante para lançar luz a uma dimensão esquecida do esporte nacional, através de duas figuras que devem ser lembradas como nada menos do que heróis.

Vinícius Volcof
@volcof

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