Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 30 de março de 2018

Torquato Neto – Todas as Horas do Fim (2017): a geleia geral brasileira

Documentário nacional sofre com as limitações orçamentárias e de arquivo para desenhar um retrato melhor do biografado, mas ainda assim faz um trabalho significativo de recuperação de sua importante obra artística.

Teresina e Londres, Chacrinha e Beatles, Cinema Novo e Nosferatu. Torquato (Pereira Araújo) Neto foi, em sua breve vida, um dos maiores poetas e letristas brasileiros associados à contracultura e ao movimento da Tropicália. Um documentário sobre sua vida e obra era, assim, apenas o esperado e o necessário para resumir uma intensa vida criativa que, ainda que breve, permanece ressoando na cultura brasileira.

Dirigido por Eduardo Ades (“A Dama do Estácio”) e pelo estreante Marcus Fernandes, “Torquato Neto: Todas as Horas do Fim é uma produção nacional que tenta contornar, com maior ou menor sucesso, todas as limitações técnicas de sua execução pela força da figura de seu protagonista. Assim, o estilo “cabeças falantes” é substituído, felizmente, por uma brincadeira de linguagem que reproduz o fascínio do biografado pela bitola do Super 8, clássica dos vídeos caseiros nos anos 60 e 70. Com isso temos depoimentos de personagens variadas filmadas nesse estilo, mas com seus áudios dessincronizados, produzindo uma narração em off que às vezes confunde o espectador sobre o autor do depoimento, porém também produzindo uma narrativa fluída, composta sobretudo por imagens estáticas, de arquivos fotográficos sobre o protagonista.

Entre os entrevistados estão figuras difíceis de serem associadas em qualquer outro contexto, como o músico Caetano Veloso e o atual Secretário-Geral da Presidência da República, Wellington Moreira Franco. Isso porque a cartografia biográfica de Torquato apresenta idas e vindas, de Teresina à Salvador, ainda na infância, quando conheceu Gilberto Gil no colégio, além do Rio de Janeiro, na companhia do grupo tropicalista, e depois a Europa, no período de endurecimento da ditadura.

O foco narrativo, contudo, está na personalidade instável do artista, rodeando o infortúnio de seu suicídio, no Rio de Janeiro, em 1972, ao longo de todo o filme. Sua morte é, assim, justificada em parte pelas tendências depressivas que demonstrava a amigos e conhecidos, e também ao contexto de repressão e desesperança da ditadura militar.

Torquato se insere, assim, no grupo de intelectuais e artistas brasileiros que proclamavam “uma nova ordem estética”, como descreve Caetano à certa altura do longa, que soma-se às bizarrices da cultura da televisão (a Era Chacrinha), com todas as influências externas (sobretudo euro-americanas) que aportavam no Brasil naqueles anos paradoxais: de chumbo político, mas também de recriação artística. Assim, criou-se a “geleia geral”, como o próprio escritor vaticinou, como só poderia florescer aqui – pois, como disse o cronista colonial, “aqui em se plantando, tudo se dá”.

Sob narração de Jesuíta Barbosa (“Praia do Futuro”) e alternando os arquivos fotográficos com trechos de alguns dos maiores filmes brasileiros já realizados, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha, e “Hitler 3º Mundo” (1968), de José Agrippino de Paula, associando o músico aos movimentos do Cinema Novo e da contracultura que se opunham à repressão política. Torquato havia participado da produção de “Barravento” (1962), de Glauber, e era um grande entusiasta do cinema – mas da prática cinematográfica, pois dizia que “o cinema é uma projeção de imagens estáticas em sequência. É sem graça. O barato mesmo é fazer cinema”. Porém, a realização mais pródiga nesse sentido foram os filmes em que incorporara uma versão brasileira do vampiro Nosferatu, em sua mímese do avesso dos trópicos, com longos cabelos soltos e sandálias tropicais.

Apesar da falta de maior (na verdade, melhor) arquivo documental, ou de entrevistas mais contundentes sobre o biografado, esse filme é uma importante revisita a uma produção artística de peso, de versos, prosas, rimas e vídeos de um dos maiores poetas nacionais. Nascido e criado num clássico exemplo de família média brasileira, Torquato ganhou o país e o mundo, e assim que sua obra se completou, como Rimbaud ou Van Gogh, decidiu-se que não tinha mais o que fazer aqui. Para o Brasil atual, talvez Torquato nunca tenha mais para fazer.

Vinícius Volcof
@volcof

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