Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Corpo e Alma (2017): sobre totens e tabus

Construindo uma bela representação minimalista dos relacionamentos humanos e explorando os difíceis bloqueios emocionais de seus protagonistas, esse filme húngaro poderia facilmente ter mais destaque na temporada internacional de premiações.

Uma das coisas que mais agradam os fãs das narrativas do cinema europeu é a cadencia com que os roteiros, sem a preocupação comercial de prender o espectador a todo custo, se permitem a explorar os pequenos rituais da vida cotidiana de pessoas, na maioria das vezes, absolutamente ordinárias. Um dos melhores exemplos desse tom característico dos filmes independentes – muitas vezes acusados de monótonos ou sem vida – é o de “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (sim, esse é o título de um só filme), de 1975, da cineasta belga feminista Chantal Arkerman (1950-2015), que por mais banal que pareça ao acompanhar a rotina de uma dona de casa enviuvada, revela-se um verdadeiro tour de force sobre estudo de personagem. Outro excelente exemplo está atualmente em cartaz. Trata-se de Corpo e Alma”, da cineasta húngara Ildikó Enyedi (“Meu Século XX”), vencedor de quatro prêmios no último Festival de Berlim, incluindo o Urso de Ouro, além outras indicações internacionais, como o da Sociedade Americana de Diretores de Fotografia (A.S.C.) e ao Oscar de Melhor Estrangeiro.

O roteiro escrito pela própria Ildikó, acompanha a sofrida aproximação entre Endre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Bobérly), dois personagens exóticos por suas características físicas e comportamentais. Enquanto Endre parece casmurro devido a uma imobilidade parcial dos membros causado por um AVC, Mária apresenta um comportamento quase autista, incluindo uma capacidade de memorização soberba, mas também um alto grau de fobia social. O cenário de encontro deles é um abatedouro bovino – retratado de modo igualmente escatológico e asséptico –, e o incidente que os conecta é quase transcendental.

Endre e Mária descobrem que partilham de um mesmo sonho: ambos são cervos numa floresta invernal e, toda noite caçam presas, buscam por água e se protegem dos perigos da natureza juntos. A descoberta faz com que eles queiram se aproximar também na vida real, levando a narrativa para o tom de romance, porém com as nuances do estoicismo e da sobriedade que só os europeus conseguem ter. O destaque ao comportamento pouco usual dos protagonistas, especialmente o de Mária (na excelente interpretação de Alexandra), é destacado em closes assépticos de farelos de pão juntados sobre a mesa, móveis em simetria e cenários minimalistas, somando-se à interpretações em que cada gesto ou expressão são refletidos e geram consequências à progressão dos acontecimentos. Já o taciturno Endre é comumente retratado envolto em sombras e sua rotina parece limitar-se ao trabalho como diretor financeiro e a assistir televisão sozinho em casa, tendo o ápice dos dias nas pausas para o café e contemplação da luz do sol no meio expediente.

Nessa trama focada na complexidade de seus dois protagonistas, o desejo e a libido ganham o primeiro plano, dando à narrativa um tom freudiano. Ela acontece, sobretudo, quando uma psicóloga (a também ótima Réka Tenki) aparece em cena. É ela quem dispara o incidente que conecta os dois personagens, descobrindo a coincidência dos sonhos, mas também nos faz descobrir camadas mais profundas da deficiência de Endre, incluindo uma possível consequência em seu desempenho sexual, melhor justificando seu comportamento.

Embora o restante do elenco de apoio e as subtramas não tenham maior importância à história – maravilhosa o suficiente pelas idas e vindas entre a vida vivida e a vida dos sonhos de seus protagonistas –, eles tampouco estragam a narrativa. Até a inserção do tedioso antagonista Sanyi (vivido pelo pianista húngaro Ervin Nágy), anacrônico em seu estilo bully de colégio secundário, não deixa de trazer certos elementos interessantes à história, nos permitindo, por exemplo, comparar as performances entre “machos alfas” daquele ambiente de trabalho (o viril Sanyi em oposição ao deficiente Endre e ao seu covarde amigo Jeno).

Essa analogia construída pelo roteiro de Ildikó entre a representação animal e a trama dos personagens humanos nos permite perspectivar uma série de comportamentos compartilhados, além de ser um belo retrato para se explorar os traumas e as limitações emocionais a que estamos sujeitos ao longo da vida e que nos bloqueiam e impede de viver plenamente. Repleto de uma poesia sem esforço, que desliza pela tela cena após cena,”Corpo e Alma” traz esse romance pouco usual, que é preenchido pelos raios solares que tocam à face de seus protagonistas, mostrando que mesmo na invernal Hungria e entre as vísceras de carne abatida, ainda existe espaço para o amor.

Vinícius Volcof
@volcof

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