Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 04 de novembro de 2017

Dona Flor e Seus Dois Maridos (2017): revisitando a Bahia de Jorge Amado

Nova adaptação da obra homônima de Jorge Amado para os cinemas, o longa de Pedro Vasconcelos peca em abrandar certos aspectos da história e em criar uma atmosfera excessivamente artificial, mas se redime graças ao bom desempenho de sua atriz principal.

A frase “‘Dona Flor e Seus Dois Maridos‘ é um clássico” pode se referir tanto ao romance de Jorge Amado (publicado originalmente em 1966) quanto ao filme homônimo de 1976 dirigido por Bruno Barreto e que, por muitos anos, foi campeão inconteste de bilheteria do cinema nacional. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito desta nova versão para o cinema, embora não seja de todo descartável.

A trama se mantém, com Dona Flor (Juliana Pães, de “A Despedida”), ao ficar viúva do fogoso malandro Vadinho (Marcelo Faria, de “Ninguém Ama Ninguém Por Mais de Dois Anos”), se casa com o respeitável e respeitador Dr. Teodoro (Leandro Hassum, de “Até Que a Sorte Nos Separe”). Apesar de amar Teodoro, Flor sente falta do jeito apaixonado de Vadinho e acaba, de algum modo, trazendo seu falecido marido dos mortos como um fantasma nu que apenas ela pode ver,mudando início ao bizarro triângulo amoroso indicado no título.

A adaptação, desta vez comandada por Pedro Vasconcelos (de “O Concurso”), é deveras fiel ao livro original, mantendo a ambientação na Bahia dos anos 40. Entretanto, há um quê de artificialidade nesta nova adaptação, que simplesmente não encaixa com a história. Visualmente, isso se manifesta na fotografia, com planos excessivamente elaborados que mais distraem o público do que ajudam a narrativa – que tem um caráter extremamente íntimo, apesar do seu teor fantasioso. Contribui para este ar artificial a filmagem digital, que deixa o longa com cara de produção para TV.

Já no roteiro, os dois maridos de Flor sofrem do mesmo mal, por motivos diferentes. Apesar de Marcelo Faria se sair bem no complexo papel de Vadinho, o mau-caratismo do personagem é um pouco aliviado nesta versão. Não entendam mal, Vadinho continua sendo um jogador viciado, bêbado e machista, mas apesar de manter a pesada cena em que ele bate em Flor, existe um esforço do filme em aliviar um pouco sua personalidade para torná-lo menos antipático ou de levar seus defeitos para um espectro mais irreal e leve, vide a sequência em flashback onde mostra o casal se conhecendo.

Ao mesmo tempo, o Teodoro de Leandro Hassum nunca deixa de parecer a caricatura de um ser humano em oposição a um personagem tridimensional. Todas as suas características são exageradas, algo típico da filmografia de Hassum. Mesmo a direção contribui para que o segundo marido de Dona Flor se mantenha apenas como um bobo alívio cômico, vide o patético fade sonoro nas vezes em que Teodoro e Flor transam. O recurso é usado tantas vezes que passa até a irritar

Quando falei que o resultado final deste longa não é descartável, isso se deve apenas ao desempenho de Juliana Paes. Embora sua primeira cena seja um tanto exagerada (quando ela encontra Vadinho morto em plena véspera de Carnaval), a atriz consegue expor toda a complexidade dos sentimentos de Flor admiravelmente, se entregando de corpo e alma ao arco da protagonista, que precisa aprender a compreender e respeitar os próprios desejos, mesmos os conflitantes.

Não é só sua sensualidade física de Paes, que sim, rivaliza com a de Sônia Braga de 1976, que conquista o público, mas a pureza dos seus quereres e paixões, demonstrando que a atriz compreendeu de fato o cerne de Dona Flor.

É justamente na alma de Flor e na interpretação soberba de Paes que jaz o pilar que sustenta o filme a despeito de seus problemas. Considerando que, em pleno 2017, ainda é quase um tabu se falar em sexualidade feminina sem descambar para clichês, a contemporaneidade precisa mesmo do reforço dessa mulher dos anos 1940 para levar o tema para o cinema de massas

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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