Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 12 de julho de 2017

Poesia Sem Fim (2016): o eterno retorno de Jodoroswky

O segundo dos cinco filmes-memória do realizador chileno é visualmente impactante e desvairado em seu roteiro autobiográfico em que muito parece mentira

O cinema do realizador chileno Alejandro Jodorowsky, de obras como El Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973), sempre foi um elemento estranho em meio à cinematografia latino-americana, de abordagens mais realistas e de crítica social. Talvez por isso, somado a crises pessoais e interesses diversos do próprio autor (expoente, entre outras coisas, na poesia e no tarot), tenha passado tantos anos distante da direção, amargando mais de duas décadas de projetos ousados que nunca decolaram, como a adaptação do clássico de ficção-científica ‘Duna’, escrito por Frank Herbert, como visto no excelente documentário e Frank Pavich Duna de Jodorowky (2013), para o qual reuniu nomes como Salvador Dalí e Moebius.

Há alguns anos, contudo, o realizador ressurgiu com um novo projeto megalomaníaco de uma série de cinco filmes autobiográficos em que revisitaria seus anos de formação, percurso artístico, influências, processo criativo e também os prazeres e dissabores de sua intensa vida. Hoje aos 87 anos, apresenta-nos “Poesia Sem Fim”, o segundo filme dessa série iniciada com A Dança da Realidade, em 2013, mas muito superior ao primeiro.

Poesia sem Fim começa com a saída da família, chefiada por seu despótico pai (interpretado por seu filho, Brontis) e uma dramática mãe (representada como uma soprano de ópera), de Tocopilla, vilarejo lúgubre na costa chilena, e mudança para um perigoso bairro de Santiago, onde estabelecem um pequeno comércio. Logo de início percebemos que suas memórias serão tratadas com mais de imaginação que o convencional, e logo lembramos que Jodorowsky de fato nunca teve nada de convencional. Reconstitui, por exemplo, a hoje abandonada rua onde morava com o auxílio de criativos elementos cênicos e figurantes mascarados de estilo teatral, promovendo uma sequencia de deliciosas surpresas visuais. Do mesmo modo, na primeira parte da narrativa insere assistentes cênicos vestidos totalmente de preto, ao estilo do bunraku, do teatro japonês de bonecos, como bem lembrou o crítico Sergio Alpendre. Desse modo, embora a falta de prática e idade avançada revelem certo enferrujamento de suas técnicas de direção, a criatividade se faz carne e habita a tela como uma torrente de vitalidade, emotividade e, é claro, poesia – em versos narrados pelo próprio diretor, que vez ou outra aparece em cena falando com suas representações.

Inesperado ponto de encontro entre Marcel Proust e Frederico Fellini, Jodorowsky morde a madeleine simbólica que o leva a revisitar, com suas já conhecidas tintas sobrecarregadas, o momento de virada entre sua infância e juventude, quando também rompe com seus pais e abandona as expectativas de uma formação em medicina rumo à vida artística. Sendo abrigado numa communitas de artistas marginais, para desespero de seus pais mete-se entre os boêmios da cidade, momento em que conhece nomes relevantes das artes chilenas e algumas figuras excêntricas situadas nas fronteiras entre o real e o nonsense, como La Víbora Stella Díaz (Pamela Flores, a melhor do elenco, que forma uma persona dupla ao também personificar a dramática mãe de Alejandro).

Quando chega à juventude, passa a ser interpretado por seu outro filho, um multifacetado e talentoso Adan Jodorowsky, que enfrenta os maiores desafios do roteiro, como cenas de nudez pública e sexo quase-explícito, além de mil outras minúcias de interpretação, que vai do circense ao dramático, da declamação poética ao monólogos.

Impossível dizer quanto de invenção há na criação jodorowskiana, o importante é que a mentira e a verdade se entrecruzam com muita qualidade, senso estético apurado e inúmeras referências simbólicas de sua leitura mística do mundo. Anjos e diabos se cruzam na rua Matucana, onde o cineasta viveu na infância; cruzes e outras figuras sacras adornam ambientes inesperados e uma torrente de tipos bizarros, como anãs menstruadas e obesos que carregam bailarinas orientais fazem parte dessa miscelânea criativa que remete aos tipos igualmente exóticos de Amarcord (1973), o “eu me recordo” do maestro Frederico Fellini.

Uma refilmagem mais adequada do que quis apresentar em “A Dança da Realidade”, muitas passagens do roteiro se repetem da mesma forma e com o mesmo conteúdo, incluindo o elenco. A explicação para isso pode ser indicada de duas maneiras: a primeira é que parte de Poesia… teve um financiamento melhor que o filme de 2013, pelo auxílio de um crowdfunding no qual contribuíram cerca de 10 mil fãs. Com isso, o diretor aparentemente resolveu corrigir alguns pontos instáveis do primeiro filme. A segunda explicação, e talvez mais importante, é que Jodorowsky é recheado de egocentrismo e autorreferência: gênio e louco condensam-se em sua figura exótica como em poucos outros no cinema atual. Seria irritante se não fosse tão talentoso, cheio de poesia e beleza, mas de alguma forma também parece condenar o realizador a uma eterna busca por si mesmo. Aguardemos os próximos filmes para ver se um dia ele irá se encontrar.

Vinícius Volcof
@volcof

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