Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 12 de julho de 2017

Divinas Divas (2016): As travestis da família brasileira

Mais conhecida por seu trabalho como atriz, Leandra Leal estréia na direção com este documentário extremamente pessoal sobre um grupo de artistas que foram suas "tias" durante sua infância no Teatro Rival, explorando não só o tema da sexualidade, mas também o da terceira idade.

Uma das coisas mais surpreendentes deste “Divinas Divas” é ver quão aberta a sociedade era nos anos 60/70 em relação aos espetáculos das travestis que compõem o grupo-título. Se podemos dizer que o Brasil se tornou mais “careta” décadas depois, também não é menos válido falar que, embora o país àquela época as aceitasse como atrações artísticas, o mesmo não podia ser dito sobre enxergá-las como pessoas.

É impossível dizer que este não é um projeto pessoal para a diretora Leandra Leal. Atriz consagrada, ela cresceu no Teatro Rival, palco de diversos shows das travestis que ela tinha como “tias”. Ao assumir a curatela daquela instituição, Leal as trouxe de volta ao antigo palco, surgindo daí este documentário, que utiliza a criação dos espetáculos como âncora narrativa.

Após uma abertura com influências art-pop, remetendo até as aberturas dos filmes do 007 nos anos 1960, mostrando as Divas antes e depois de suas transformações em tempos áureos, Leal nos apresenta a realidade de outrora e atual de Rogéria, Marquesa, Jane Di Castro, Divina Valéria, Eloina dos Leopardos, Camille K e Fujika de Holliday enquanto ensaiam o retorno aos palcos e relembram o passado.

Um dos pontos mais interessantes da narrativa é que não há exatamente uma unidade de pensamento entre as protagonistas, criando pequenos conflitos de egos dentro do grupo enquanto o espetáculo é coreografado. À medida em que a história de vida delas é esmiuçada pelo longa, é possível compreender os dramas e as diferenças entre elas, especialmente no tocante à sexualidade de cada uma. Esse verdadeiro mosaico, trazido pelo filme na forma das peculiaridades das personalidades retratadas no longa, é enriquecido pelas ótimas inserções de imagens de arquivo que retratam uma sociedade que abraçava de maneira agridoce essas travestis. Tudo isso é feito com um apuro visual responsável por trazer dinamismo à narrativa.

Embora repleto de humor por conta da vivacidade natural das próprias Divas e seus “causos” existe uma tristeza inerente à nostalgia e à tristeza da passagem do tempo em vários dos relatos, por vezes brutalmente honestos. Nisso, trata-se de uma obra que não lida apenas com a questão do travesti, mas também com a da terceira idade, e de maneira extremamente sensível. Há um discurso de Marquesa – que, aliás, tem alguns dos melhores momentos do filme – nos últimos momentos da projeção que é simplesmente arrebatador neste sentido.

O velho ditado diz que os artistas morrem duas vezes, uma quando somem dos palcos e outra quando partem desse mundo, sendo a primeira vez a mais triste. Com “Divinas Divas”, Leal deu uma sobrevida artística a um grupo incrível de performers e assegurou que o legado delas será preservado para a posteridade, tudo isso em um documentário ágil, divertido e emocionante.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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