Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 30 de junho de 2017

Okja (2017): uma fábula sobre uma verdade indigesta

O maior problema do filme é estrutural, no sentido de que é previsível na sua narrativa, com um segundo ato arrastado. No mais, o filme é excelente em quase tudo.

Os fornecedores de alimentos não se importam com a saúde do seu público, tampouco possuem consciência ecológica, preocupando-se apenas com seu próprio lucro, ainda que a publicidade precise mascarar a verdade. Partindo dessa premissa, “Okja” faz um retrato indigesto, mas bastante real dessa verdade que todos sabem e preferem ignorar.

Em um prólogo didático, Lucy Mirando (Tilda Swinton, de “Doutor Estranho”) anuncia que sua empresa descobriu uma nova espécie animal, conhecido como “superporco”, encaminhando vinte e seis exemplares para serem criados por dez anos em diversos países ao redor do mundo – um deles, a fêmea Okja, que vai para a Coreia do Sul. Após esse período, participarão de um concurso que escolherá o melhor. Quando a data chega, a jovem Mikha (Seo-Hyun Ahn, de “A Empregada”), criadora de Okja junto com seu avô, não aceita perdê-la, estando disposta a enfrentar o que for necessário para manter Okja em sua companhia.

Trata-se de mais um ótimo filme de Joon-Ho Bong, consagrado por “O Hospedeiro” e “Expresso do Amanhã”, dentre outros. Talvez aqui o sul-coreano não tenha feito seu melhor trabalho, todavia, permanece bem acima da média. Como co-roteirista, escreve um texto que só não é fenomenal pela estrutura formulaica. A estrutura triangular da interação entre as personagens – referente à menina, aos seus inimigos (a empresa) e aos seus pretensos aliados (um grupo que a ajuda) – concede dinâmica à trama, sem olvidar a plausibilidade (isto é, tudo aquilo existe). Não obstante, o texto se permite extrapolar a esfera do plausível para abraçar um humor bizarro, como quando terroristas mandam a vítima colocar cinto de segurança antes da colisão entre os veículos, ou quando a “superporca” corre no metrô de Seul. O script tem ainda o indispensável senso crítico referente ao radicalismo daqueles que defendem uma causa: a passagem é sucinta, porém, é feita a ressalva de que o extremismo também não é a via ideal, pois não é porque “toda produção de alimento é exploradora” que não se pode mais comer nada. Razoabilidade, sempre: é essa a mensagem.

Entretanto, não se pode ignorar que, do ponto de vista estrutural, o longa é previsível, com uma narrativa que, no segundo ato, flerta com o entediante, de tão arrastado. É verdade que o terceiro ato do filme é soberbo, inclusive intensificando a crítica à voracidade do capitalismo (tema apreciado por Bong). Ainda assim, o desenvolvimento da narrativa só consegue maiores emoções com cenas mais sensacionalistas. Nessas, quando o animal sofre, também o espectador sofre, porque, já no primeiro ato, o diretor se preocupou em tornar Okja uma criatura adorável. O CGI é elogiável, dando a ela bastante realismo: pele áspera, com alguns pelos, em um design que lembra o de um hipopótamo – porém, mais amigável, com olhar mais retilíneo e orelhas mais longas e abaixadas. A edição de som corrobora o realismo, fazendo com que ela ronque como um porco, mas em menor intensidade, pois seu focinho é menos achatado. Okja é adorável também em razão do seu seu relacionamento com Mikha. Para a menina, as duas não são dona e animal de estimação, não são sequer amigas, pois a jovem a considera membro da família. Tanto é assim que elas dormem juntas e Mikha a assiste enquanto ela faz suas necessidades fisiológicas (naquele humor bizarro, isso acaba sendo relevante).

O afeto entre Mikha e Okja é muito envolvente. Isso ocorre pelos fatores já mencionados relativos ao animal, mas também porque a pequena Seo-Hyun Ahn é bastante convincente ao expressar carinho (a atriz também é boa no oposto, por exemplo, quando fica com raiva do avô). Além disso, a odisseia pela qual ela passa é formidável, movida por uma trilha sonora empolgante, majoritariamente instrumental, com ápice numa cena em slow motion ao som de “Annie’s Song”, de John Denver (exceção cantada). Do ponto de vista de fotografia, o primeiro ato tem cenários naturais e planos abertos, com enormes florestas e montanhas; quando, porém, Mikha vai para Seul, no começo, prevalecem planos fechados no que para ela é uma “selva de pedra” em que as cores parecem se resumir ao cinza (comparando à natureza que ela via antes).

Como se não bastassem tantas virtudes, o elenco conta ainda com a sempre maravilhosa Tilda Swinton, cujo trabalho interpretativo depende de minúcias que apenas uma atriz do seu gabarito consegue fornecer – evidentemente, a direção de arte colabora bastante. Com Jake Gyllenhaal (de “Animais Noturnos”) o efeito é oposto: apesar do bom visual – extremamente cafona, com óculos e bigode retrô, além de camisa e/ou bermuda e/ou paletó sem combinar, e bermuda curta acima do umbigo –, o ator recorre a uma voz aguda e ao overacting para ser um vilão engraçado, o que não dá certo. E Paul Dano (de “Um Cadáver para Sobreviver”)… fez o que lhe cabia no papel.

Não há dúvida que “Okja” atinge seu objetivo de crítica à indústria alimentícia, seja por sua despreocupação ambiental, pelos maus-tratos aos animais ou por ignorar as consequências na saúde do consumidor. O filme faz pensar, até porque é muito bem feito. O que mais incomoda é o formato de fábula, do qual resulta a previsibilidade. O resto? Excelência em (praticamente) tudo.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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