Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 01 de junho de 2017

Mulher-Maravilha (2017): sorrisos e otimismo marcam filme-solo da maior heroína das HQs

Uma apaixonante Gal Gadot arrebata o público na estreia-solo da Princesa Amazona na telona, com a diretora Patty Jenkins entregando ao público uma aventura carismática, charmosa e deveras inspiradora.

Após o récem-concebido Universo Expandido DC ser abalado pelos duvidosos “Batman vs. Superman – A Origem da Justiça” (Zack Snyder, 2016) e “Esquadrão Suicida” (David Ayer, 2016), a Warner Bros. ainda sofreu com os fracos desempenhos financeiros de seus filmes neste começo de 2017, deixando “Mulher-Maravilha” com um peso igual ao de Atlas sobre seus ombros. Restou então para a heroína criada por William Moulton Marston colocar as coisas nos trilhos para a DC e para a WB.

Se na data em que esta crítica foi escrita ainda não há um veredito sobre o desempenho da produção nas bilheterias mundiais, ao menos pode-se dizer que este primeiro filme solo da Princesa Amazona é deveras bem-sucedido como obra cinematográfica. A diretora Patty Jenkins (de “Monster – Desejo Assassino”) entregou uma fita que, descontando a trilogia “O Cavaleiro das Trevas”, é a melhor adaptação para o cinema de um herói da DC desde “Superman – O Filme” (Richard Donner, 1978).

Há ainda um plus raro para os dias de hoje: não é necessário assistir aos episódios anteriores do Universo Estendido da DC para embarcar na história, tratando-se de uma aventura fechada, com começo, meio e fim.

Jenkins entrega um filme divertido e cheio de charme, características que certamente o separam das recentes versões para o cinema de propriedades da DC. Embora o longa lide sim com temas complexos (e infelizmente atemporais), tais como machismo, racismo e a propensão humana para a autodestruição, ele o faz de uma maneira lúdica e sensível, sem jamais tornar o filme tolo ou pesado demais.

Há o suficiente do material dos quadrinhos para não alienar os fãs de longa data, mas é completamente desnecessário qualquer conhecimento prévio para apreciar a aventura. A diretora e o roteirista Allan Heinberg (que já escreveu HQs da personagem e é mais conhecido por seu trabalho em séries como “Grey’s Anatomy”) beberam sim de quadrinistas como George Pérez, Len Wein, Greg Rucka e Brian Azzarello (e um pouquinho da “Liga da Justiça” de Geoff Johns, um dos produtores do longa), mas usaram esses elementos para criar uma versão única da mitologia da heroína, aproveitando-se sempre do carisma contagiante de sua estrela, a bela israelense Gal Gadot, para conduzir a narrativa.

Criada na Ilha de Themyscira, Diana (Gadot) é a princesa das Amazonas, treinada por sua tia Antiope (Robin Wright, de “House of Cards”) para ser uma guerreira invencível, sempre sob o olhar vigilante de sua mãe, a Rainha Hipólita (Connie Nielsen, de “Gladiador”). Quando o espião americano Steve Trevor (Chris Pine, de “Star Trek – Sem Fronteiras”) acidentalmente cai na ilha, ele conta às Amazonas do grande conflito que ocorre no mundo do patriarcado, que conhecemos como Primeira Guerra Mundial. Guiada por seu desejo de proteger os inocentes, Diana parte para tentar parar o conflito, certa de que Ares, o deus grego da guerra, está influenciando este confronto global.

Mesmo tendo sido introduzida de maneira um tanto quanto desajeitada em “Batman vs. Superman”, a Diana de Gal Gadot roubou a cena quando apareceu naquele longa. Sendo a dona dessa narrativa, finalmente o potencial pleno da personagem (e da atriz) pôde ser utilizado e se Mulher-Maravilha brilha, muito se deve ao encaixe perfeito entre a heroína e sua intérprete.

Aqui, Diana é mostrada como uma lutadora imbatível, mas também como um símbolo de carinho e esperança, inspirando aqueles que encontra em sua jornada, tudo aquilo que os heróis centrais dos filmes anteriores do Universo Estendido da DC falharam em ser nos três filmes anteriores. O sorriso e o carisma de Gadot tornam fácil crer que está ali a encarnação do amor e do espírito da verdade.

Mostrar rapidamente a infância da personagem, com ela se espelhando nas fortes mulheres de sua família para se tornar a mulher que está destinada a ser (algo facilitado ao se colocar atrizes do calibre de Robin Wright e Connie Nielsen nesses papéis), foi um toque genial, que humaniza a heroína e a coloca, nesses momentos, em pé de igualdade com as jovens espectadoras.

Desde o Superman de Christopher Reeve – homenageado aqui na cena do beco -, a DC/Warner não investia em um personagem que se mostrava tão entusiasmado em fazer o bem, apenas por puro altruísmo, com Gadot se saindo admiravelmente bem, jamais transformando a heroína em uma caricatura, mas sim em alguém que luta contra as injustiças que vê ao seu redor de maneira honesta.

E é essa falta de cinismo por parte de Diana que a diferencia dos demais heróis que vemos hoje nos cinemas. Diana fala o que pensa sobre temas que deixam até alguns homens contemporâneos embaraçados e não hesita em jogar algumas verdades duras na cara daqueles que precisam ouvi-las, apesar de estar em uma época em que as mulheres ainda não tinham voz.

Mesmo sendo jogada em um dos momentos mais selvagens da história da humanidade, ela luta para inspirar o bem no coração dos outros, o que se torna algo ainda maior justamente porque Jenkins, apesar de se ater à censura PG-13, não disfarça as consequências da guerra. Jenkins e Gadot entendem que, justamente por aquele ser um mundo sombrio (e vejam o contraste entre as paletas de cores de Themyscira e do mundo do patriarcado), sua heroína precisa brilhar ainda mais.

O relacionamento entre Diana e o Steve Trevor de Chris Pine é outro ponto forte da narrativa. Gadot e Pine exalam uma inegável química durante toda a projeção, com o crescendo no relacionamento dos personagens e até mesmo os chistes entre eles se desenrolando de maneira apaixonante, embora haja um desentendimento digno de comédia romântica no final do segundo ato.

Como o clímax da aventura acontece em um aeroporto, há ali uma referência (intencional ou não) ao romance entre Rick e Ilsa em “Casablanca” (Michael Curtiz, 1942) e espero que os deuses do cinema não me condenem por comparar Gadot e Pine a Humphery Bogart e Ingrid Bergman, mas o fato é que temos em Diana e Steve um dos casais mais divertidos da história recente dos filmes de aventura.

Assim como em “Capitão América – O Primeiro Vingador” (Joe Johnston, 2011) da concorrente Marvel, a heroína-título conta com um grupo multi-étnico de irmãos de guerra em seu batalhão, embora aqui exista um esforço para dar-lhes alguma profundidade. Destaque para o veterano ator escocês Ewan Brenner (o Spud de “Trainspotting” e sua sequência) como um atirador de elite sofrendo de síndrome de estresse pós-traumático.

A direção de arte é mais um acerto da produção. Houve um cuidado imenso na recriação do ambiente e do clima da Primeira Guerra Mundial para que, mesmo em um universo fantástico, o público conseguisse sentir aquele conflito como real, algo importantíssimo para o arco de Diana. Nisso, os elementos de fantasia como a própria Mulher-Maravilha e a ilha de Themyscira também tiveram de ser construídos de modo verossímil, mas isso não tira o impacto de seu caprichado design de produção. Tudo o que vemos naquele paraíso parece tangível e mitológico ao mesmo tempo, mesmo as águas curativas ou as próprias armas das Amazonas – a exceção vai para o laço de Héstia, claramente digital em algumas cenas de ação.

Embora coberto de virtudes, o longa possui seus pecadilhos. As duas primeiras grandes cenas de ação da fita (a primeira em Themyscira e a recreação da Batalha de Somme) funcionam – a primeira por ser uma batalha aberta com exércitos bem distintos e em um ambiente exótico, a segunda por demonstrar de maneira incrível os dons de Diana no meio de uma versão alternativa de um evento real -, mas o confronto final no aeroporto acaba exagerando na pirotecnia computadorizada e destoa do resto do filme. Também há um uso excessivo de câmera lenta em todas as set-pieces. O 3D não é recomendado aqui pois, além de não acrescentar nada à experiência, ainda prejudica a fotografia com um sensível escurecimento das cores.

Os vilões também são um problema. A revelação de Ares ocorre tardiamente e não surpreende ninguém, embora o visual do deus da guerra seja muito bom, em uma ótima adaptação do design de George Pérez. Já os agentes alemães vividos por Danny Huston e Elena Anaya são muito exagerados, inclusive com um momento envolvendo uma máscara de gás que parece saído do seriado do Batman estrelado por Adam West.

No entanto, esses percalços não apagam as virtudes incríveis desta produção que veio no momento certo para trazer um pouco de luz e alegria a um período tão conturbado para o mundo e nos lembrar que heróis podem sim inspirar. Parafraseando “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, este é o filme que merecíamos e precisávamos.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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