Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 08 de maio de 2017

Corra! (2017): thriller de alta qualidade

Mais difícil que combater o racismo é desmascarar o racismo velado. Com base nessa premissa, Jordan Peele se mostra promissor em seu primeiro trabalho como diretor.

Perto da meia-noite, algo maligno fica à espreita, no escuro, sob a luz da lua. Gritos não adiantam, a visão quase causa um ataque cardíaco ao herói, aterrorizado, que começa a congelar até ficar paralizado. É uma noite de terror. Melhor dizendo, é uma pequena passagem do filme “Corra!”.

O longa tem como protagonista Chris (Daniel Kaluuya), jovem prestes a conhecer a família da sua namorada Rose (Allison Williams). O que preocupa Chris é que o fato de ele ser negro (e ela, branca) possa incomodar os familiares de Rose, enquanto ela o tranquiliza, afirmando que seus pais não são racistas. Com o tempo e com a estranheza das pessoas que conhece – inclusive empregados negros que trabalham na casa – ele descobre segredos muito além do que imaginava.

O prólogo da fita é um plano-sequência noturno em que um negro solitário é atacado por uma pessoa mascarada que sai de um carro branco. Não apenas uma metáfora eloquente, mas uma cena eficaz e bem executada logo no início, o que surpreende por se tratar de um diretor de primeira viagem. Jordan Peele (“Cegonhas”), conhecido na atuação, faz uma maravilhosa estreia como diretor com um trabalho também espetacular no roteiro.

O ápice na direção é uma cena que mistura efeitos visuais e sonoros de maneira fenomenal (com auxílio do ótimo trabalho dos atores), de uma riqueza técnica exemplar, consistindo em um importante plot point do script. No terceiro ato, quando tudo parece se resumir a um plot twist, o roteiro revela algo muito maior, mais perverso, uma revelação mais ampla e chocante. Com a direção inventiva que “Corra!” tem, a sensação de desconforto é perene, na mesma medida em que aumenta a curiosidade para o desfecho. A direção sofre a influência de Tarantino, basta ver a discordância da trilha sonora em relação à violência mostrada (ao estilo “Cães de Aluguel”) – esta, todavia, é muito mais branda, uma tortura ficta.

Original e criativo, o texto se esquiva dos rótulos comerciais conhecidos como “gêneros” e mergulha na hibridização. “Get Out” (no original) tem momentos de drama e de comédia, um suave romance e um pouco de ação, apostando bastante no suspense com pitadas de terror, miscelânea que dá muito certo. Em síntese, um thriller exemplar. Ainda mais relevante, o que é fundamental na obra pode ser resumido na seguinte frase: ainda mais difícil que combater o racismo é desmascarar o racismo velado. O preconceito aparece de maneira gradual na narrativa: primeiro, o policial; depois, o caseiro e a cozinheira; mais à frente, a festa.

Na verdade, o suspense é um invólucro para uma crítica social que vai além do óbvio, referente às pessoas que não se enxergam como racistas, ainda que sejam. O discurso chega a ser expresso: se uma pessoa votaria no Obama para um terceiro mandato, certamente essa pessoa não é racista. Será mesmo? Em outras palavras, o roteiro mira na questão nevrálgica da matéria: o preconceito racial (ou qualquer outro) deve ser analisado de uma forma mais íntima, em especial no trato pessoal com indivíduos que sofrem a violência discriminatória. Afinal, no discurso, (quase) ninguém tem preconceito algum. Enfim, afirmar “até ter um amigo negro” não descaracteriza o racismo, mas, ao revés, o reafirma – e o mesmo se aplica às demais formas de discriminação.

O elenco é muito bem escalado, com destaque especial para o britânico Kaluuya (“Sicario: Terra de Ninguém”), que alterna com destreza os intensos momentos pelos quais o protagonista passa (o que inclui os de sofrimento sem igual). Os coadjuvantes são bem orientados: os negros interpretam personagens artificiais e mecânicos, cuja falsidade é impressa na voz e nos gestos, permitindo a Chris e também ao público perceber com facilidade que há algo estranho – sem detectar, porém, o motivo –; os brancos interpretam papéis misteriosos, ainda que arquetípicos. São nomes quase desconhecidos do grande público, mas artistas competentes no trabalho.

Há que se mencionar, contudo, que nem tudo dá certo em “Corra!”. O próprio desfecho é, em certa medida, questionável – e dizer mais que isso significa correr o risco de apresentar spoilers. A montagem também não foi feita com esmero, como ocorre no segundo ato, em que a elipse na qual o casal principal reata após uma briga é demasiadamente fugaz. Quanto ao alívio cômico representado por Rod (Lil Rel Howery, do “The Carmichael Show”), o humor (onde estão as raízes de Peele) é bastante estúpido e ocasionalmente irritante – além de não contribuir na narrativa. Entretanto, são falhas minúsculas para um cineasta inexperiente. Considerando esse primeiro longa, trata-se de um nome muito promissor. “Get Out” é um thriller de alta qualidade, não se pode negar.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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