Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 22 de março de 2017

Trainspotting – Sem Limites (1996): obra obrigatória

Danny Boyle apresenta uma direção inventiva e requintada, eternizando momentos inesquecíveis a partir de um roteiro cuja premissa é o existencialismo sartreano. “Trainspotting” é um filme impudico, transgressor e genial.

Casablanca” (1942), “Psicose” (1960), “O Iluminado” (1980), “Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros” (1993), “O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei” (2003) e “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015). Cada um com a sua grandeza e suas virtudes, são obras cultuadas em razão do que agregam à sétima arte. No caso de “Trainspotting – Sem Limites” o que o torna diferenciado?

O longa tem como protagonista Mark Renton (Ewan McGregor, de “Star Wars: Episódio I ”), um desocupado usuário de cocaína, cuja vida desnorteada tem na heroína o elemento mais relevante. O cotidiano de Renton é compartilhado com seus amigos, também viciados: Sick Boy (Johnny Lee Miller, de “Aeon Flux”), Tommy (Kevin McKidd, de “Cruzada”), Spud (Ewan Bremner, de “Falcão Negro em Perigo”) e Begbie (Robert Carlyle, de “A Praia”). O enredo consiste nas aventuras pelas quais o grupo passa.

Superficialmente, o roteiro parece singelo. Contudo, a narrativa flui de maneira imprevisível e natural (a abundância das palavras de baixo calão é reflexo da naturalidade), ainda que adote a estrutura clássica de três atos. Há que se ressaltar que o embasamento filosófico do plot é fascinante: “o homem está condenado a ser livre”. Trata-se de ensinamento do filósofo Jean-Paul Sartre, expoente do existencialismo. Não é a simples ideia segundo a qual a vida é feita de escolhas (que sequer lhe seria exclusividade), é um aprofundamento da inevitabilidade das escolhas. É a liberdade em seu mais alto nível, uma liberdade que envenena o ser humano justamente pela sua amplitude. Logo, Renton precisa escolher: escolher um trabalho, uma família, uma televisão, abridores de lata elétricos, saúde, plano dentário, amigos, roupas esportivas etc.. Como ele mesmo diz: “escolha seu futuro. Escolha viver”.

A construção das personagens é rica: Renton é um sujeito perdido na vida e sem perspectiva de futuro, encontrando nos amigos e nas drogas seu porto seguro; Tommy é um atleta mais próximo do padrão de conduta social, o que justifica as ironias que o roteiro lhe reserva; Spud é um rapaz lento (exceto quando está sob efeito de droga) que, ao contrário dos demais, é ingênuo e bondoso; Begbie é um psicopata que alterna entre discursos arrogantes e agressões – sua psicopatia, todavia, é leve, não alcançando um nível Patrick Bateman. Sick Boy é o menos desenvolvido: intelectual e quieto, sua verdadeira natureza é uma incógnita. Em termos de elenco, vão todos bem, embora o overacting de Carlyle torne Begbie desagradável. O grande destaque, por óbvio, é McGregor, muito (magro, jovem e) confortável no papel – não à toa, foi o único que teve carreira profícua desde então.

O grande nome da produção é Danny Boyle. Foi apenas em 2008, com “Quem Quer Ser um Milionário?”, que o diretor atingiu maior status com prêmios importantes (inclusive Oscar). Entretanto, no longa de 1996 sua genialidade já era visível. O texto do filme colabora para sua direção inventiva, contudo, apenas uma mente criativa como a dele consegue unir boa técnica com inovação. Sem pudor (algum sexo, um pouco de nudez e muito uso de drogas), faz piadas com sagacidade – como a associação entre uma narração de um “gol penetrante” e a suposta ejaculação de personagens – e sabe a sensibilidade necessária nas raríssimas cenas trágicas da película (com a câmera movimentando-se de maneira lenta). As metáforas visuais são incontáveis, sendo a mais explícita a da sequência em que Renton cai em um buraco, como uma cova, ao injetar heroína em uma veia.

Com domínio da mise en scène (nesse quesito, merecem atenção as cenas gravadas na casa de Renton em Londres), é com inteligência que o diretor usa os dois sentidos da cor vermelha. Primeiro, como sinônimo de paixão, quando Renton se relaciona com uma moça (vermelho presente em seu casaco e na parede da balada). No entanto, o vermelho também aparece no tapete do local onde usam drogas, indicando o perigo. O figurino é minimalista como precisa ser, de acordo com a condição das personagens.

Graças a Boyle, “Trainspotting” tem cenas simplesmente inesquecíveis: de Renton defecando e depois entrando na privada de um banheiro asqueroso a um lençol sujo graças à escatologia solta de Spud. A sequência mais espetacular é a que Renton é preso em seu quarto e sofre alucinações em razão da crise de abstinência – de requinte técnico, gravar aquilo não deve ter sido nada fácil. Entre referências a “Brinquedo Assassino” e “O Exorcista”, o protagonista é embalado ao som de “Mile End”, eletropop da banda Pulp.

Aliás, a trilha sonora é quase uma personagem à parte: ainda que as músicas possam não agradar ao espectador, elas combinam muito com o filme. Já no agitadíssimo prólogo (que na verdade é um flash forward) toca o rock “Lust for Life”, de Iggy Pop, anunciando o ritmo adotado – a música tema, “Born Slippy”, de Underworld (banda com nome sugestivo, não?), passa a mesma mensagem. Não obstante, também está lá a melodia mais famosa de Bizet, “Habanera” (versão instrumental), ária de “Carmen”. Que trilha sonora fantástica!

Trainspotting – Sem Limites” é impudico, transgressor e genial, causando reações a qualquer público. É um exemplo de direção e de roteiro que não se tornou clássico à toa. Para qualquer cinéfilo, portanto, uma obra obrigatória.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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