Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de fevereiro de 2017

Estrelas Além do Tempo (2016): mais importante do que marcante

Uma história extremamente relevante contada de maneira conservadora, mas que se destaca graças a seu conteúdo e boas interpretações.

Em dado momento deste “Estrelas Além do Tempo”, um personagem se mostra atônito pelo fato que a NASA dos anos 1960 tinha em seus quadros mulheres negras trabalhando como computadores humanos, realizando cálculos complexos e importantíssimos para o sucesso da corrida espacial, a qual os EUA estavam perdendo para a União Soviética. Sendo deveras honesto, eu também não conhecia a inspiradora jornada real das três personagens centrais do filme, por mais que estas tenham ganho um merecido destaque nos últimos anos.

O longa é baseado no livro de Margot Lee Shetterly e roteirizado pela estreante Allison Schroeder e pelo próprio diretor, Theodore Melfi (do divertido “Um Santo Vizinho”). Melfi decidiu por adotar uma estrutura extremamente tradicional para a produção. Ou seja, temos uma rápida introdução da brilhante matemática Katherine Johnson (Taraji P. Henson, da série de TV “Empire”) e dos sacrifícios que seus pais e comunidade fizeram para que ela tivesse a educação que seu gênio precisava.

Rapidamente, a trama já nos mostra a moça ao lado de suas colegas na NASA, Dorothy Vaughan (Octavia Spencer, de “Histórias Cruzadas”) e Mary Jackson (a cantora Janelle Monáe) e como cada uma lida com a segregação racial, tão assustadoramente presente no dia-a-dia da Flórida sessentista.

Cada uma das três luta com um desafio diferente dentro da Agência, com Dorothy temendo que ela e suas colegas se tornem obsoletas com a chegada das máquinas IBM, Mary tentando sair do cargo de assistente e tornar-se uma engenheira plena e Katherine sendo transferida para a divisão de pesquisa de voo, trabalhando revisando os cálculos do arrogante engenheiro-chefe Paul Stafford (Jim Parsons, de “The Bg Bang Theory”, basicamente fazendo o seu Sheldon aqui, só que com menos humor e carisma), sob o comando direto de Al Harrison (Kevin Costner, de “O Homem de Aço”).

Apesar de Katherine ser a personagem principal e sua trama ocupar a maior parte da projeção, incluindo sua vida doméstica e o seu relacionamento com um coronel (o ótimo, e aqui, discreto, Mahershala Ali, de “Moonlight”), as sub-plots envolvendo Dorothy e Mary são desenvolvidas de maneira satisfatória, embora a luta de Mary para conseguir sua graduação para o curso de engenharia seja um tanto abreviada.

A despeito de ter sido indicado ao Oscar de Melhor Filme, Theodore Melfi não foi indicado como melhor diretor. Isso porque o cineasta parece durante toda a projeção tentar contar essa história da maneira mais “correta” possível. Ao contrário das personagens aqui retratadas, Melfi não se vê como um pioneiro e decide ficar no óbvio, com o elenco e a direção de arte se destacando mais do que sua direção. Até a fotografia investe no seguro, no contraste ao retratar a NASA com uma paleta de cores mais fria e os ambientes domésticos de forma mais viva.

As consequências da segregação são mostradas com um relativo humor para tentar “suavizar” o desconforto e ojeriza do público-médio atual, as emoções são mantidas a um nível controlado para não deixar ninguém desconfortável. Tudo parece feito para atrair o máximo possível dos quatro quadrantes de espectadores-alvo, não importa se ao custo de parte da força da história.

Isso inclusive se reflete no roteiro, onde quase todos os pontos de virada possuem a participação do personagem de Kevin Costner (homem e branco) para “abalizar” as conquistas de Katherine, o que acaba tornando os arcos de suas colegas mais satisfatórios – vejam a diferença na relação entre Katherine e Harrison com aquela entre Dorothy e sua chefe, interpretada com um quase cartunesco desdém por Kirsten Dunst (“Tudo Acontece em Elizabethtown”).

Isso não diminui o impacto ou a importância das ações de Katherine ou a doce composição de personagem por parte da talentosíssima Taraji P. Henson, mas reforça uma falsa percepção de que mesmo grandes feitos de afroamericanos precisam ser motivados por homens brancos. Nisso, Katherine se torna a mais tímida das três heroínas da trama e mesmo o momento em que confronta Harrison sobre o abuso que sofria para ir ao banheiro acaba desembarcando em uma cena mais focada em Kevin Costner.

A interpretação mais atrevida por parte da quase estreante Janelle Monáe acaba brilhando mais dentro do trio. Taraji se viu um tanto sabotada pela relativa timidez de Katherine nos dois primeiros atos. Octavia Spencer, por sua vez, repete os mesmos maneirismos vistos em “Histórias Cruzadas”, embora felizmente a torta nada ortodoxa vista naquele filme não apareça aqui.

Nos EUA (e, em menor escala, no resto do mundo), é comum ver engenheiros, cientistas, historiadores e arqueólogos dizendo que entraram nesses campos influenciados por “Jornada nas Estrelas”, “Star Wars”, “Indiana Jones”… Histórias que eram (à época) estreladas por homens brancos. Se este “Estrelas Além do Tempo” fizer o mesmo por meninas, já terá valido a pena, mesmo com seus pecadilhos.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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