Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Elis (2016): uma cinebiografia engolida por suas pretensões

Com roteiro desorganizado e apressado, filme peca justamente por não dar chance para que sua personagem-título ganhe força por conta própria.

Uma das características que mais denunciam o quão problemática é determinada obra é a importância que ela dá a si mesma. Quando o assunto é interessante, bem realizado e possui conteúdo, ele não precisa ficar gritando tela afora: “Olhem como isso é demais!” ou “Vejam como esse período foi significativo e essa pessoa fora de série”. Esse tipo de conclusão deve ser entregue ao espectador de forma sutil, para que ele mesmo chegue a tais definições por conta própria. Ao lado de um roteiro esquemático, que cria arcos dramáticos na exata proporção em que os desperdiça, esta provavelmente é a principal falha deste “Elis”, do estreante na direção de longas-metragens Hugo Prata.

O filme acompanha um recorte grande da vida da cantora Elis Regina (aqui interpretada com paixão por Andréia Horta), basicamente toda a sua carreira, desde sua chegada com o pai ao Rio de Janeiro para dar os primeiros passos em busca do sonho, passando por vários acontecimentos importantes em sua trajetória profissional e pessoal e terminando em sua trágica morte, quando já era mãe de três crianças e estava em seu segundo casamento. Aliás, essa é sempre uma questão delicada quando se trata de cinebiografias: o quanto você quer mostrar da vida do seu personagem. Elis Regina, no caso, possuía inúmeros arcos interessantes de serem explorados em sua jornada, mas parece que os realizadores preferiram tentar abraçar o mundo todo com as pernas e acabaram por não dar a atenção devida a nenhum deles.

Aponto isso não pelo fato de que alguma dessas passagens tenha sido deixada de lado, mas justamente pelo contrário. Na ânsia de colocar todos os incidentes que cobrem quase 20 anos da vida do personagem-título em tela, o roteiro de Luiz Bolognesi e Vera Egito, juntamente com o diretor Prata, acaba se tornando uma correria desenfreada, sem dar tempo para que sintamos as consequências de cada um dos fatos apresentados na personalidade de Elis Regina, bem como nas músicas que ela compõe. Assim, há momentos durante as quase duas horas de projeção que até é perceptível, por exemplo, que o drama que a envolve exerce evidente influência em suas canções, mas o longa não trabalha para que o impacto dessas mudanças seja pleno, tornando a experiência um tanto quanto superficial.

Em vez disso, o texto parece mais preocupado em sair citando nomes de artistas famosos e movimentos culturais da época como uma espécie de escudo para que os reais problemas do script sejam escondidos atrás de uma gama de “curiosidades” jogadas sem a mínima organização. Então, direta ou indiretamente, tem Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Nelson Motta, “Música Popular Brasileira” e uma série de outros exemplos que simplesmente são “cuspidos” no colo do espectador, sem nenhum desenvolvimento mais bem elaborado ou organicidade em termos narrativos.

Sob esse prisma, no entanto, é justo colocar que a obra cresce sensivelmente em seu terço final, quando “os anos de chumbo” da ditadura militar se fazem presentes e compõe bem o drama vivido por Elis, ficando claro a forma como este período afetou sua popularidade em dado momento e o modo como ela passaria a enxergar a vida dali em diante. Neste sentido, Andréia Horta se mostra uma artista capaz de fazer uma transição coerente entre uma moça bela, talentosa, corajosa e extremamente alegre (com um pouco de overacting, talvez, mas isso não vem ao caso) para uma adulta triste, abalada com os acontecimentos que se sucedem ao seu redor e a rejeição de parte do público.

Essa transição, por outro lado, não é tão bem conduzida em termos de cinematografia. Em vez de uma fotografia trabalhada período a período, fase da vida por fase da vida, o que se tem é uma paleta de cores dessaturada desde o os primeiros minutos de filme, de tons excessivamente escuros, quando o que se estava vendo em tela não pedia por uma abordagem nessa linha. Dessa forma, quando o drama cresce e Elis passa pelas mudanças citadas anteriormente, a continuidade da composição estética não estabelece uma transformação que seja coerente com que se está vendo tanto no texto do trio de roteiristas, quanto na atuação de Horta.

De todo modo, “Elis” é uma obra que deve agradar os fãs mais ávidos de uma das mais importantes artistas brasileiras. Mais como documento histórico do que como bom cinema, entretanto.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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