Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 20 de novembro de 2016

A Chegada (2016): chegou um dos melhores do ano

O roteiro é genial, passeando entre filosofia da linguagem e física moderna. A direção de Denis Villeneuve é eficaz para criar a atmosfera de suspense e hábil para fazer desta a sua melhor obra. Um filme magnífico que conduz a infindáveis reflexões.

É possível ser original ao abordar extraterrestres no cinema? Dennis Villeneuve provou que sim: seu “A Chegada” é, ao menos até agora, um dos melhores filmes do ano, com uma originalidade pulsante, uma técnica irrepreensível e uma inteligência admirável. Cabe o alerta desde já: é uma obra que provoca reflexão, uma película complexa e de difícil compreensão. Não serve para todos os públicos, portanto.

Não se trata de um “filme de ETs”, mas sim de um “filme com ETs”. A diferença é abissal: na trama, a dra. Louise Banks (Amy Adams) é chamada por militares para auxiliar na compreensão da linguagem dos alienígenas que invadem o planeta, com o objetivo de, com a ajuda do cientista Ian (Jeremy Renner), descobrir o que eles querem aqui. Dizer mais do que isso do plot resultará em spoilers indesejáveis que afetam a experiência nesse caso específico.

Os alienígenas são personagens que se inserem no texto para, inicialmente, provocar a discussão sobre comunicação e linguagem. O que é central não é a invasão, mas seu objetivo e o modo pelo qual é possível que ele seja descoberto. Supondo que o planeta fosse realmente invadido, e supondo que o idioma alienígena fosse desconhecido e aprioristicamente ininteligível, como saber o propósito da invasão? O Coronel Weber (Forest Whitaker, discreto) procura uma gabaritada linguista para trabalhar como intérprete. Ainda assim, supondo que fossem alcançados signos (termos, falados ou escritos) com significado aparente, como saber se o significado atribuído (pelo intérprete) é o mesmo almejado pelo emissor da mensagem?

Isso é semiologia e filosofia da linguagem. Didaticamente, em especial a partir das teorizações de Willard Quine, Roland Barthes e Jürgen Habermas, tem-se como premissas que: não existe um conceito ontológico das palavras; é possível atribuir significado (sentido) aos significantes (palavras) a partir do contexto, pois signos (vocábulos) não têm sentido senão a partir da sua inserção no discurso; e o agir comunicativo é uma interação social (a linguagem é uma arte social) na qual os atos comunicativos dos agentes têm como instrumento a linguagem e como objetivo o entendimento. Logo, entender o que é dito nem sempre é fácil, menos ainda quando se trata de falantes de idiomas bastante distintos. A protagonista Louise – Amy Adams, dedicando-se em uma atuação formidável – tem como desafio não apenas se comunicar com os aliens como convencer os militares da eficácia da sua metodologia.

Comunicação e linguagem: é aqui que se inicia a interação social. Como se não bastasse o ponto de partida filosófico, o roteirista Eric Heisserer toma emprestadas noções da física moderna para prosseguir no texto. Mais uma vez, melhor não desenvolver a ideia, evitando spoilers. O script é bastante complicado e exige que o espectador tenha a disposição de pensar para poder entender a obra – e quiçá repensar a própria realidade. Mais que um subtexto intelectual, a narrativa se desenvolve de forma genial, inusitada e perspicaz. Engenhoso, Heisserer não deixa pontas soltas e dá credibilidade ao roteiro ao criar uma atmosfera bem realista. Por exemplo, os alienígenas não chegam apenas nos EUA, mas em diversos países do mundo (Venezuela, Rússia, China, Austrália etc.), que, inclusive, reagem à novidade de maneiras diferentes. A construção das personagens não teve, porém, o mesmo esmero.

Para um roteiro tão peculiar, um diretor habilidoso: Denis Villeneuve atinge seu auge (até agora) com “A Chegada”. Se esquivando das convenções da ficção científica, o cineasta inova tanto no básico (força da gravidade) quanto no avançado (a arte visual e sonora pensada para representar os ETs). Panorâmicas inusitadas, establishing shots em meio a uma bela fotografia, planos longos… o arsenal de Villeneuve é de qualidade. Exceto por planos-detalhes nas mãos trêmulas de Louise, o diretor sabe ser sutil (a colisão dos carros no estacionamento é a sagaz menção do desespero das pessoas) e, principalmente, elaborar a atmosfera de mistério que o enredo demanda.

Na verdade, o longa é tanto uma ficção científica quanto um suspense, pois a primorosa montagem, ditada por um ritmo bastante lento (afinal, não é um filme de Michael Bay), atribui à diegese um instigante mistério. A primeira interação de Louise com os aliens é uma sequência sensacional e impactante. O terceiro ato é um pouco mais veloz, todavia, não interfere no conjunto. O drama pessoal da protagonista parece incomodar por interromper os acontecimentos principais sem fazer sentido. Conclusão precipitada: no desfecho, a narrativa faz sentido. A mixagem de som, salvo na cena em que a protagonista coloca fones de ouvido dentro do helicóptero, é aquém da robusta edição de som, que é variada, intensa e crível – compatível com a fita. Também a trilha sonora é modesta.

“A Chegada” é um filme fantástico, impressionante, sublime! Porém, não merece a nota máxima: apesar de magnífico, não alcança um nível inesquecível. Talvez nem seja essa a sua pretensão: se o que ele quer do espectador é fascínio durante a experiência e reflexão após assistir, o faz com louvor.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

Compartilhe