Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 13 de setembro de 2016

O Homem nas Trevas (2016): um filme de tirar o fôlego

Agradável surpresa, o filme é um suspense sensacional. Enquanto narrativa, o roteiro não chama a atenção, mas é no subtexto que revela a sua inteligência. A direção é tão magnífica quanto a atuação do veterano Stephen Lang.

São poucos os filmes de suspense que conseguem agradar e surpreender positivamente com a facilidade de “O Homem nas Trevas” (“Don’t Breathe” – não respire – no original). A inteligência começa no nome, que tem duplo sentido: “trevas” pode indicar tanto a cegueira do homem quanto a sua profunda tristeza; o “não respire” (no imperativo) pode ter como destinatário o espectador, extasiado na enérgica tensão do longa, ou as personagens, que não têm descanso quando a trama se inicia.

Repleto de surpresas, o roteiro, embora não fuja de algumas convenções tolas – coincidências (como munição que se encerra quando conveniente), imortalidades incômodas, desfecho clichê e assim por diante –, é dotado de um enredo singelo e um subtexto riquíssimo. Três jovens (Rocky, Money e Alex) acostumados a pequenos furtos em lares vazios decidem cometer um de maior monta na residência de um homem cego e solitário. Mesmo sabendo que ele é um ex-militar e querendo subtrair a indenização que ele recebeu em razão da morte da sua filha, o subestimam e acabam descobrindo, encarcerados no local, que ele é um habilidoso e frio psicopata.

Há um discurso ateísta e de descrença no ser humano. A direção de arte é sutil ao colocar a marca de um crucifixo na parede, indicando que o objeto esteve lá por algum tempo, mas que foi retirado (deixando a marca). Mais adiante, o homem escancara a sua desilusão mundana ao afirmar que “Deus é uma piada de mau gosto” e que Ele “não existe”. Seu fundamento é que, se existisse uma divindade, não permitiria um mundo com tantos males. Há verossimilhança entre o drama sofrido pela personagem e suas conclusões filosófico-religiosas – o que, evidentemente, não justifica a atrocidade de seus atos, resultado de uma psicopatologia severa. Também é nessa área que reside o retrato da falibilidade humana: as quatro personagens têm seus “defeitos”, não há conduta exemplar, aspecto que lhes concede realismo e humanidade. O homem cego começa como vítima, mas a situação brilhantemente se inverte, o que, por outro lado, não consegue torná-lo vilão (no máximo, antagonista). Isto é, todas estão erradas, ainda que eventualmente tenham motivações parcialmente nobres. Parecem arquétipos (o psicopata, o delinquente, o apaixonado e a mulher-objeto), entretanto, existem idiossincrasias em suas personalidades que apenas as vicissitudes da narrativa conseguem expor.

Também como subtexto há uma associação entre marginalização social e criminalidade. Novamente, não é uma justificativa para os atos criminosos, mas consequência lógica para as personagens. Rocky vê no furto uma catapulta para o almejado recomeço em sua vida ante a ausência de oportunidades. O plot não verticaliza tanto em Money e Alex, deixando de lado seus arcos dramáticos. Quanto ao primeiro, não fica claro se o crime é resultado de um desvio de caráter ou se ele é impelido a essa vida por circunstâncias sociais (mais provável, pois é quem mais domina o “mundo do crime” entre os três). É frágil a motivação de Alex (ganho fácil e do amor platônico por Rocky), e a subtrama do seu pai é nebulosa. De todo modo, é visível a ideologia da falta de oportunidades como força motriz do cometimento de crimes – em última análise, a falácia da plenitude da meritocracia. Não por outra razão, o homem cego afirma que “garotas ricas não são presas”. Trata-se, em síntese, de uma incisiva crítica social de cunho intelectual.

Jane Levy (Rocky), Dylan Minnette (Alex) e Daniel Zovatto (Money) são competentes nos papéis, mas quem brilha mesmo é o veterano Stephen Lang na pele de um homem assustador. Com poucas falas, sua linguagem corporal é gritante para delinear a personagem: um homem bruto, inescrupuloso, frio, habilidoso e extremamente perigoso. Em sua segunda aparição (a primeira é muito rápida), ele parece inofensivo, por não saber o que está ocorrendo na sua residência, porém, em um interregno curto, fica claro o que ele é capaz de fazer. Calculista, se assegura de trancar as saídas da casa (conjuntura similar à de “O Quarto do Pânico”) para ninguém fugir. Sua força e reflexos rápidos (o tiro no celular que vibra é sensacional) surpreendem, e o trabalho do ator se torna admirável nos momentos extremos – notadamente recordações do passado melancólico (que o tornou amargo) e irritação em momentos-chave. É uma das melhores interpretações de Lang.

Fede Alvarez escreveu um roteiro muito bom, contudo, é na direção do seu segundo longa que o promissor cineasta encanta. Três sequências maravilhosas merecem menção – para além da ausência de pudor ao mostrar violência, sangue e golpes. A primeira é o prólogo chocante (establishing shot em um plongée aéreo com travelling e zoom in lento até melhorar a nitidez da imagem), que apenas no terceiro ato se encerra, ao ser retomado. Ainda, poucos diretores novatos têm a ousadia de gravar um plano-sequência tão fascinante o do primeiro ato, em que o espectador é conduzido pela casa (para conhecê-la), como se fosse um quarto invasor, bem como manipulado a enxergar várias pistas do porvir (sapatos deixados na porta, machado, sino, tudo que futuramente recebe um propósito). Da mesma forma, a cena de perseguição no porão (provavelmente o ápice da tensão), recebe uma fotografia acinzentada para indicar a completa ausência de luz (razão pela qual Rocky e Alex ficam com os olhos esbugalhados), e o ambiente recebe picos de iluminação apenas quando o homem cego atira. A edição de som ficou aquém do potencial (barulhos altos incomodando o cego são momentos óbvios) – todavia, nada imperdoável.

Trata-se de um suspense refinado e exitoso na atmosfera de tensão. Pode não causar aqueles pulos da poltrona que muitos gostam, porém, o homem cego é bem mais amedrontador que a maioria dos filmes de terror imbecil que entram em cartaz semanalmente.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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