Paul Greengrass e Matt Damon trazem Jason Bourne de volta da aposentadoria em uma produção que reconhece que o tempo passou para seus personagens e que o mundo pós-Snowden é um lugar bem diferente para o mundo da espionagem - é bem mais perigoso para as liberdades individuais.
Existe um desafio maior em continuações quando o longa anterior termina em um “final feliz”. Por definição lógica, o fato do protagonista se envolver em um novo drama após a conclusão do anterior nega a conclusão “alegre” deste último.
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A franquia “Bourne” (e aqui ignorarei o fraquíssimo “O Legado Bourne” assim como este novo longa o faz) já passou por isso. No filme original, “A Identidade Bourne”, Jason (Matt Damon) termina feliz ao lado de Marie (Franka Potente), coisa que o primeiro ato de “A Supremacia Bourne” trata de desfazer em seu primeiro ato e, espertamente, o final daquele filme é colocado como o pontapé inicial do terceiro ato de “O Ultimato Bourne”, que tinha, até aqui, encerrado as aventuras do desmemoriado agente secreto, que enfim recuperou sua memória e expôs os segredos sujos da CIA.
O drama da trilogia havia sido resolvido, com Bourne tendo seu passado de volta e os engravatados por trás de tudo presos ou mortos. Então, como o diretor (e agora também roterista) Paul Greengrass trouxe Bourne de volta? A resposta veio com esse “Jason Bourne”, que traz o personagem de volta nove anos após sua última aparição – e em um mundo pós Wikileaks e Edward Snowden, diga-se de passagem.
Durante este período de hiato entre os filmes, Jason sumiu do mapa, se mantendo (e se martirizando) em lutas clandestinas. Nicky (Julia Stiles) se tornou uma ativista digital, tentando revelar os segredos sombrios do governo para o mundo, enquanto a CIA prepara o lançamento de um novo programa secreto de vigilância ao lado do dono de uma gigantesca rede social (Riz Ahmed).
Quando Nicky descobre a verdade sobre o recrutamento de Jason para o programa Treadstone, os dois passam a ser caçados pelo diretor da CIA Robert Dewey (Tommy Lee Jones) e pela ambiciosa chefe de cyber-ops da Agência, Heather Lee (Alicia Vikander), com Bourne também tendo em seu encalço um operativo sem nome (Vincent Cassel), que parece pessoalmente empenhado em matá-lo.
Superficialmente, a audiência assistirá assombrada as energéticas cenas de ação da fita, capturadas com o dinamismo habitual de Paul Greengrass e seu colaborador de longa data, o diretor de fotografia Barry Ackroyd.
Os planos elaborados pelos dois, somados com a montagem brilhante de Christopher Rouse (outro parceiro frequente do diretor), tornam o longa absolutamente bem sucedido em capturar o verdadeiro caos que é o mundo de Bourne, passando pelo tumulto na Grécia que encerra o primeiro ato (uma das melhores e mais complexas cenas de ação da franquia, diga-se), indo para o tenso confronto em Londres que marca o segundo ato e fechando na insana perseguição automobilística em Las Vegas que incendeia o terço final da projeção. Todas as três setpieces, mesmo tendo identidades próprias, possuem em comum o caos e poucos diretores conseguem mostrar isso de maneira tão competente quanto Greengrass.
Em seu cerne, no entanto, “Jason Bourne”, como denúncia o seu título (que destoa dos demais da franquia), é sobre o indivíduo. A Agência, através de seus programas, extirpou seus agentes de suas identidades e vontades, transformando-os em objetos – não é à toa que o operativo de Cassel não possui nome e, a despeito de possuir desejos, ele só pode agora sobre eles quando permitido por seus chefes. Ao contrário dos glamourosos e heróicos Ethan Hunt e James Bond, os agentes dos programas deste mundo (seja Treadstone ou Blackbriar) não possuem uma vida fora de suas missões, sendo condicionados apenas para servir.
Jason pode ter recuperado seu passado como David Webb (seu nome antes de Treadstone), mas ainda não o entende e se martiriza por ter sido voluntário (conforme frisado pelos seus “criadores” desde o longa anterior). A partir daí, cria-se o novo conflito. O personagem-título já tem sua memória de volta, mas não sabe ainda o que aconteceu com sua individualidade e, solitário, não sabe como voltar a ser um indivíduo e não um mero objeto. Até ser provocado por Nicky, o objetivo de Bourne era meramente sobreviver, ficando fora de circulação, em uma existência sem rumo ou propósito.
Bourne não se interessa em ser um herói e não possui uma agenda ou ideologia e até mesmo seu “ato heróico” ao expor a CIA é relativizado aqui, com suas consequencias sendo mostradas. Ademais, com exceção de Nicky, todos os que seguem uma cartilha ideológica aqui, não importa o espectro, são colocados sob uma luz negativa.
A CIA clássica é mostrada investindo para acabar com a privacidade (e liberdade) em prol da “segurança”. O mais interessante é que o Dewey de Tommy Lee Jones não é um vilão clássico. O antagonista não age motivado para se encobrir erros pretéritos ou por cobiça, mas por ideologia pura (o contrário de Bourne), sendo enfocado como um fanático extremista de certo modo. A fria Heather Lee, vivida com um estoicismo acertado por Alicia Vikander e o magnata da informática interpretado por Riz Ahmed já abrem um contraponto, adicionando camadas de ambição à mistura.
Matt Damon, ainda que com poucas linhas de diálogo, mantém o carisma que o cimentou como Jason Bourne. O agente se mostra relevante a este novo mundo – e a escolha consciente em explorar o envelhecimento dos personagens é extremamente acertada por mostrar as mudanças pelas quais eles e aquele universo passaram, refletindo a nossa realidade atual.
Não é o melhor exemplar da série, tendo alguns problemas de ritmo e com Julia Stiles surge como o grande calcanhar de Aquiles do elenco, atuando aparentemente de má vontade em meio a um cast sólido capitaneado por Damon. No entanto, o longa tira com sucesso o protagonista de sua “aposentadoria” e o coloca em uma encruzilhada que esta equipe mostrou que pode desenvolver plenamente no futuro.
“Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança“. Benjamin Frankin.