Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A Garota Dinamarquesa (2015): um bom filme, apesar de Tom Hooper

Talento do casal de protagonistas e bons valores de produção se destacam em novo longa mediano do diretor Tom Hooper.

a-garota-dinamarquesa-posterPoucos nomes são tão significativos para o movimento LGBT como o de Lili Elbe. Ela foi a primeira pessoa a fazer uma cirurgia para mudança de gênero, ainda na primeira metade do século passado. Se hoje (ainda) vivemos em uma sociedade preconceituosa e com pouco respeito às liberdades individuais, é difícil imaginar a repercussão que uma intervenção dessa natureza causaria naquela época. Eis que o diretor Tom Hooper decidiu trazer às telas essa história, com o roteiro de Lucinda Cuxon, a partir de romance de David Ebershoff.

Inicialmente, o filme conta a história de Einar (Eddie Redmayne) e Gerda (Alicia Vikander) Wegener, casal de pintores dinamarqueses que vivem em Copenhague. Enquanto Einar é um artista de renome, já estabelecido, Gerda ainda está nos primeiros passos no intuito construir sua reputação e estilo próprios, ainda que com a ajuda do marido. No entanto, em uma dessas ajudas, Einar veste a roupa da modelo que estava posando para Gerda e tem uma espécie de revelação: sente-se bastante confortável e, além disso, um surpreendente prazer naquela experiência. A partir daí, a vida deles começa a sofrer uma mudança gigantesca. Einar e Gerda criam uma personagem, Lili, para extravasar suas fantasias e também para servir de modelo para os quadros de Gerda. No entanto, aquilo começa a tomar proporções inesperadas. Dia após dia, Lili passa a ocupar um espaço cada vez maior na vida de Einar, até chegar ao ponto de tomar a decisão de se submeter a uma cirurgia experimental do Dr. Warnekros (Sebastian Koch), um médico alemão, na cidade de Dresden.

O roteiro de Cuxon é construído em várias camadas, tendo início com um tom leve, quase de uma comédia, quando Einar e Gerda ainda tratam Lili, e todas as suas descobertas, como uma brincadeira íntima, pueril e inconsequente. No entanto, a medida que Lili começa a ter mais espaço, o drama daqueles personagens se torna cada vez mais profundo e perturbador.

Outro aspecto interessante é quando o texto mostra a reação das pessoas em torno do casal. Há desde as pessoas que os apoiam, como a amiga Ulla (Amber Heard) e o amigo de infância Hans (Matthias Schoenaerts), passado por aqueles que ficam indiferentes e até mesmo aqueles que aceitam pelas possibilidades amorosas que aquela mudança acarreta, como é o caso de Henrik (Ben Whishaw). No entanto, mesmo com esses acertos, fica a sensação que se perdeu a oportunidade de levantar uma discussão mais acentuada, por não mostrar reações negativas mais acintosas, por parte de membros da sociedade ou mesmo pessoas próximas, do círculo de amizades. Mesmo assim, ainda há espaço para desenvolver a visão “científica” da época, em que um caso tão complexo era tratado de modo pragmático por profissionais de saúde.

O arco dramático dos protagonistas é bem desenvolvido, com cada um seguindo em direções diferentes. Contudo, por mais bem escrito que fosse o roteiro, ele seria desperdiçado não fosse o casal principal uma dupla de tão imenso talento. Alicia Vikander justifica todos as indicações e prêmios que conquistou nessa temporada. A atriz sueca consegue transmitir toda a confusão interna pela qual sua personagem está passando.

Gerda está dividida entre perder o marido, que dá cada vez mais espaço a Lili, e apoiá-lo em sua busca pela felicidade. Sem contar ainda o sentimento de culpa que leh persegue, por ter incentivado o surgimento de Lili. Como não poderia deixar de ser, o grande destaque fica para Eddie Redmayne. Nas mãos de um ator menos cuidadoso, a figura de Lili Elbe poderia facilmente se transformar em alguém risível ou afetada. Porém, o ator segue por um caminho diferente, com bastante atenção aos pequenos detalhes, que transformam Lili em alguém totalmente diferente de Einar. Chama a atenção a diferença de postura entre as duas facetas. Enquanto Einar é um homem seguro, com uma postura e voz firme, mas que não consegue disfarçar o desconforto por sentir estar em um corpo que não faz jus ao seu estado interior. Já Lili tem sua voz rouca e trêmula – para disfarçar o timbre masculino – e gestos delicados, suaves, além de exalar a felicidade por ter finalmente se encontrado como ser humano. Outro aspecto interessante é perceber o estudo que o personagem elabora, ao observar mulheres de várias idades e classes sociais a sua volta, para compreender como uma mulher se comporta, desde movimentos comuns em locais públicos até movimentos sensuais em um bordel de Paris.

Em seus aspectos visuais o longa funciona muito bem, com uma reconstrução de época convincente, com destaque para os figurinos elaborados, e uma direção de arte competente. O único senão é a falta de preocupação com alguns detalhes, como o fato de nunca mostrar os pintores, durante seu trabalho, sujos de tinta, chegando ao exagero de mostrar Einar pintando vestido de terno e gravata, algo impensável em qualquer época. A maquiagem também realiza um trabalho minucioso, com destaque para a transformação de Redmayne de Einar em Lili. Em contraponto, a música de Alexandre Desplat, apesar de eficiente, está longe de figurar entre seus melhores trabalhos, sem construir qualquer tema minimamente memorável.

Já Tom Hooper, apesar de já ter sido indicado ao Oscar, inclusive vencendo por “O Discurso do Rei” realiza mais uma vez um trabalho mediano. Ele faz uso de algumas características presentes em filmes anteriores, como enquadramentos simétricos e planos fechados. Infelizmente também estão presentes características negativas de sua filmografia, como o uso equivocado de câmera baixa ou plano detalhe.

Apesar de alguns problemas, “A Garota Dinamarquesa” é um filme tocante, com alma, especialmente pelo desempenho excelente de seus protagonistas.

David Arrais
@davidarrais

Compartilhe