Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 07 de janeiro de 2016

Os Oito Odiados (2015): velhos hábitos, novos temas e mais um filmaço

Retornando à sua velha forma com diálogos afiados e cabeças explodindo, Quentin Tarantino mostra que sua arte está mais viva do que nunca e que é capaz de criar alegorias pungentes com debates atuais.

570648.jpg-r_640_600-b_1_D6D6D6-f_jpg-q_x-xxyxxCoragem é o termo que melhor se encaixa no oitavo (ou seria nono?) longa-metragem do aclamado cineasta Quentin Tarantino, e isto tanto em aspectos técnicos quanto temáticos. A começar pela gênese do material, quando uma espécie de roteiro-rascunho vazou na internet e quase enterrou o projeto. Inicialmente revelado como a possível continuação de “Django Livre” (2012) e abordando novamente o Velho Oeste, as opiniões a respeito da produção ficaram deveras divididas, tendo assim o autor certa audácia para enfim lançar a película. Mais ainda quando anunciou que a faria originalmente no formato de 70mm, tecnologia artisticamente interessante mas pouco explorada, principalmente pela falta de salas para reprodução.

Vide as adversidades, logo no início somos surpreendidos quando a trama nos aloca em meio a uma nevasca devastadora e um longo plano aberto, acompanhado por um tema crescente e poderoso, destacando uma carruagem que traz o carrasco John Ruth (Kurt Russell) e sua prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), onde era esperada a típica aridez presente nos westerns de modo geral. Nesse meio tempo surge o curioso caçador de recompensas Marquis Warren (Samuel L. Jackson) e o tanto atrapalhado Chris Mannix (Walton Goggins), que se identifica como novo xerife e assim como Marquis pede para embarcar no veículo de Ruth. Pelo caminho eles encontram abrigo no Armazém da Minnie, e lá conhecem figuras tão peculiares em personalidade quanto eles.

De volta à sua habitual base estrutural narrativa, recheada de longos e surpreendentes diálogos hilários, Quentin Tarantino tem rapidamente o espectador nas mãos pelo fabuloso texto que apresenta logo no primeiro capítulo e por sua hábil condução fílmica. Com a ajuda do novo montador Fred Raskin e através de inúmeras ferramentas o diretor faz com que a plateia permaneça vidrada na tela durante toda projeção. E é realmente incrível que um longa de 2h48min e calcado em diálogos impetre tal façanha. Mais ainda quando os dois primeiros atos basicamente abdicam de cenas de ação no intuito de desenvolver e melhor construir a personalidade de cada figura presente na cabana. E quando os momentos de gore e impacto chegam, a catarse acaba sendo ainda mais eficaz.

E como em quase todos os filmes do cineasta, os personagens são marcantes por si só e possuem faces absolutamente distintas, sendo aqui a maioria deles sujeitos rudes, violentos e detestáveis, ao mesmo tempo em que esbanjam carisma, criando desse modo o chamado processo de identificação. A aparência decadente de Kurt Russell e os modos brutais de seu John Ruth mostram-se contrapostos quando este demonstra com pequenos gestos certa afeição pela prisioneira que carrega. Esta que por sua vez é brilhantemente interpretada por Jennifer Jason Leigh, que sumida há algum tempo faz talvez aqui a performance mais forte de sua carreira, construindo uma mulher que, ainda que fora da lei, é valente ao ponto de não se deixar abater diante de tantas pancadas em formas literais e metafóricas.

Mas é o Major Marquis Warren de Samuel L. Jackson que se encarrega de representar a principal alegoria do filme, o racismo ainda hoje muito questionado é um dos principais temas discutidos por Tarantino dessa vez. Obviamente aos seus moldes e de maneira que as ideias sejam expostas brutalmente dentro de uma história particular repleta de símbolos ou mesmo arquétipos que se mostram humanizados devido a capacidade do realizador. E como não destacar a presença de Walton Goggins que vai ganhando espaço e se torna fundamental dentro da trama. Ou Tim Roth divertindo-se ao emular os trejeitos de Christoph Waltz.

É comum que os apreciadores da arte de Tarantino aguardem quais serão as referências oriundas selecionadas para os seus próximos trabalhos, vide a infinidade de homenagens prestadas durante toda sua carreira. E quem esperava que Sergio Leone fosse o escolhido da vez teve que se contentar com alguns planos e enquadramentos, já que “Os Oito Odiados” remete instantaneamente ao excepcional “O Enigma do Outro Mundo” (1982). As alusões são claras e ostentadas, e não apenas por trazer de volta Kurt Russel ou a nova e soberba trilha sonora do mestre Ennio Morricone inserir passagens do tema que ouvíamos no clássico de John Carpenter, mas também por possuir toda atmosfera claustrofóbica que envolve a trama e despontar as aflições das pessoas confinadas em meio à nevasca em busca de um culpado.

Ou até mesmo pela lindíssima fotografia gélida e azulada de Robert Richardson, que com suas lentes anamórficas confere tonalidades distintas em meio a enorme razão de aspecto que precisa cobrir – a direção de arte ganha destaque por se atentar a pequenos detalhes notados na cabana, dando uma aula de mise-en-scène. E é incrível como, depois de tanto tempo, o cineasta consiga criar esse paralelo e entregar uma obra tão autoral, orgânica e genuína. Entrando assim para a lista de grandes feitos do realizador, que a cada novo filme promove um evento cinematográfico digno de compará-lo a qualquer autor que já homenageou.

Wilker Medeiros
@willtage

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