Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Sniper Americano (2014): patriotismo, guerra e dor

Mostrando um relato de guerra de um ponto de vista mais pessoal, este novo trabalho do veterano cineasta Clint Eastwood evita entrar em discussões políticas sobre a legitimidade da Guerra do Iraque, mas trata da história de seu personagem-título com uma firmeza norteada pelos valores conservadores partilhados por diretor e biografado.

imageClint Eastwood possui valores muito bem definidos. Republicano de direita (pleonasmo) e defensor árduo do direito dos estadunidenses de portar armas, é fácil entender os motivos que levaram o consagrado cineasta a abraçar a história de Chris Kyle e levar a autobiografia deste, “Sniper Americano”, para o cinema com este filme homônimo.

Militar texano falecido em fevereiro de 2013, em um assassinato que vai a julgamento em fevereiro de 2015, Kyle é considerado o mais letal franco-atirador da história militar dos EUA, com 160 mortes confirmadas durante seus 10 anos de serviço nos SEALs.

Focada exclusivamente na trajetória do protagonista-título (vivido por Bradley Cooper), a produção mostra o desejo inicial deste de se tornar um cowboy, os valores familiares conservadores que nortearam seu alistamento voluntário nas Forças Armadas (“Deus, pátria e família”), bem como seu treinamento e eventual ascensão militar, que levaram Kyle a ganhar a alcunha de “Lenda”. Mas como os quatro turnos na Guerra do Iraque afetarão Chris e seu relacionamento com sua esposa (Sienna Miller) e filhos?

O enfoque microscópico do roteiro de Jason Hall (“Conexão Perigosa”) evita grandes debates quanto a legitimidade da invasão. Ao contrário de longas como “A Hora Mais Escura”, o que temos aqui é o foco centrado nas trincheiras, sem grandes explorações políticas, excetuando as convicções morais do protagonista. Isto não é exatamente um demérito do filme, mas uma escolha consciente de Eastwood e Hall. O grande cenário não importa muito para o soldado que está tentando proteger a si mesmo e aos seus companheiros no meio de uma guerra. O problema que os realizadores fizeram ouvidos surdos para pontos mais polêmicos.

Em alguns momentos, a fita lembra “Tropa de Elite”, não apenas nas seqüências de treinamento para os SEALs, que remetem às do BOPE, mas especialmente ao mostrar a incapacidade Chris em desapegar da guerra e voltar de fato para casa, problema também enfrentado pelo Capitão Nascimento. Afinal, como o protagonista lida com o fato de ter constantemente mulheres e crianças em sua alça de mira? Chris chega a falar várias vezes que se foca nas vidas que salvou, não nas que tirou, mas é claro que isso abalaria qualquer um.

Eastwood evita expor excessivamente a alma de seu personagem central, fechando-o o máximo possível, fazendo com que a atuação de Bradley Cooper exponha a verdadeira panela de pressão que Chris se torna no decorrer da projeção, com cada um de seus traumas de batalha deixando um impacto crescente em sua alma.

Graças ao alcance dramático de Cooper, podemos ver como o cowboy bem humorado de outrora vai dando lugar lentamente a um homem soturno e afastado do “mundo real”. Neste sentido, o trabalho de Sienna Miller como Taya, esposa de Chris, reforça a alienação do protagonista em seus momentos domésticos, especialmente se compararmos a química entre os dois antes e depois do envolvimento do militar na Guerra do Iraque.

A necessidade que Eastwood e Hall sentiram de mostrar um “rival” para o seu herói acaba se mostra um tanto forçada. O vilão Mustafa (Sammy Sheik) não tem nenhum desenvolvimento além de uma citação de um passado olímpico, não profere uma só palavra durante o filme e sempre surge com uma aura sombria excessiva.

Também um atirador de elite, Mustafa poderia servir como um paralelo interessante para o próprio Chris Kyle no que se refere a dedicação de ambos às suas respectivas causas, mas surge como um antagonista genérico digno de um dos filmes de “Dirty Harry”. Ademais, é impossível não notar o verdadeiro desdém que a produção (e seus personagens) exibem em relação aos iraquianos em geral, chamados sempre de “hadjis” ou “selvagens”. A xenofobia do exército americano, por mais que seja historicamente acurada, não é reprimida pelo roteiro, mas abraçada plenamente pelo guião sem qualquer reflexão crítica.

As seqüências de ação são extremamente bem conduzidas e inseridas na narrativa sempre nos pontos corretos, até por não se tratar de um longa focado exclusivamente no combate, como “Falcão Negro em Perigo”, mas uma película que precisa dessas cenas mais brutais para mostrar com honestidade e veracidade o cotidiano de seu personagem-título.

Destaque óbvio para o tiroteio em meio a uma tempestade de areia, trabalhado com elegância e ritmo pelo veterano cineasta e pelo diretor de fotografia Tom Stern, colaborador habitual de Eastwood. É recomendável conferir a versão IMAX do filme, mesmo com a produção não tendo sido filmada originalmente no formato, não pela qualidade da imagem (a altíssima resolução até ressalta alguns problemas, como o horroroso boneco que representa o bebê de Kyle), mas pelo som magnífico, que joga o público dentro dos embates ao lado de Chris, tornando óbvios os motivos pelos quais a obra foi indicada ao Oscar nas categorias de edição e mixagem de som.

Há uma simbologia muito forte quando vemos que o pelotão de Chris Kyle traz consigo o símbolo do Justiceiro, personagem da Marvel Comics conhecido por executar sem dó aqueles que, em seu ponto de vista, devem ser punidos – um louco tido como herói por muitos fãs de quadrinhos, diga-se. “Sniper Americano” pode não tratar da Guerra do Iraque com a complexidade que o tema merece, mas é bem sucedido em sua proposta, mesmo que ela sofra de cegueira seletiva.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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