Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 07 de outubro de 2013

Obsessão (2012): choque e equilíbrio entre valores e personalidades

Enredo complexo e bem escrito dá espaço para dramas individuais sólidos com belas atuações.

004Com seu segundo longa-metragem, “Preciosa – Uma História de Esperança”, que concorreu a  cinco estatuetas do Oscar em 2010, Lee Daniels provou seu talento como cineasta, principalmente no tocante à sensibilidade aos dramas humanos. Em “Obsessão”, o diretor lida com um tipo de história diferente, mas confirma a mesma destreza. A narrativa descentralizada exige que o espectador seja fisgado inicialmente pelo enredo, deixando os personagens cumprirem seus papéis naturalmente dentro dele para, durante o processo, obterem o interesse do público e se tornarem o foco narrativo.

A trama gira em torno do misterioso assassinato de um xerife, cujo resultado foi a sentença da pena de morte para Hillary Van Wetter (John Cusack). Suspeitando que o julgamento tenha sido orquestrado e o verdadeiro culpado do crime ainda esteja solto, os jornalistas Ward e Yardley, interpretados respectivamente por Matthew McConaughey e David Oyelowo, decidem investigar o caso por conta própria.

Para isso, Ward conta com a ajuda de seu irmão caçula, Jack (Zac Efron), para servir de motorista durante a investigação. Um dos pontos chaves neste procedimento é Charlotte (Nicole Kidman), que durante meses tem trocado cartas de amor com o acusado e se propõe a cedê-las para a investigação a fim de libertar seu amado da cadeia. Em meio a tudo isso, o jovem Jack começa a desenvolver uma paixão incontrolável pela sensual Charlotte.

Neste contexto, também se destaca Anita (Macy Gray), a empregada da família de Ward e Jack. Os valores do pai e da madrasta dos dois irmãos, W. W. e Ellen, vividos por Scott Glenn e Nealla Gordon, denunciam o choque de gerações em um período em que a sociedade tentava se libertar das próprias amarras. Temas como preconceito e sexualidade permeiam a narrativa, mas sem levá-la para um âmbito político-social. Daniels faz questão de resguardar o indivíduo, a pessoa por trás de todos os estereótipos e causas sociais.

O diretor consegue apresentar de forma clara a trama relativamente complicada, mas nunca deixando de lado o trabalho com personagens, mantendo a narrativa no nível pessoal. Também merece destaque o roteiro adaptado de Daniels ao lado de Dexter, autor do livro que serve de base para o filme. Cada personagem tem motivações e ambições bem definidas, sendo caricaturas verossímeis de diferentes lugares sociais, mas sem deixar de impor suas particularidades.

O nível das atuações agrega muito à qualidade do filme. Todos os atores têm seus momentos, com destaque para McConaughey – que é quem mais tem a oferecer no longa – e Kidman, que surpreende deixando sua inexpressividade de lado e mergulhando sem medo na pele da irreverente Charlotte. Cusack tem um tempo de tela menor, mas exibe uma enorme presença que rouba a cena todas as vezes em que aparece, dando a seu rosto costumeiramente abobalhado um tom ameaçador, perfeito para o personagem.

Ironicamente, quem está mais deslocado é Jack, o personagem que, no título original, dá nome à obra – “The Paperboy”, que significa “o entregador de jornais”, referindo-se a sua profissão. Mas isso não é de forma alguma uma falha, pois é justamente com ele que o espectador mais se identifica. A postura de se deixar guiar que Jack exibe em relação às personalidades tão fortes e por vezes conflitantes com as quais convive é a mesma do público em relação ao filme, que nos surpreende progressivamente.

Assim como em “Preciosa”, a montagem é um dos pontos fortes da obra em termos técnicos. Como frequente colaborador de Daniels, Joe Klotz inebria o público em determinadas sequências com seus cortes e transições libertos de convenções. Sempre ousando, o montador acerta a mão no sentimento que se propõe a descrever do personagem e a conferir no espectador.

A tradução brasileira do título, aparentemente genérica, talvez diga mais sobre o caráter da obra do que o original. “Obsessão” é o que Ward tem pela verdade sobre o caso que investiga, é o que Charlotte tem por uma vida a dois, é o que Jack tem por Charlotte. Os personagens se entregam de corpo e alma a algo ou a alguém, e alguns deles têm seus desejos realizados de forma distorcida, inesperada, revelando mais sobre seus dramas internos do que traduzindo seus ideais particulares de felicidade, consequentemente fazendo-lhes crescer.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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