Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 28 de maio de 2013

Além da Escuridão – Star Trek (2013): o presente visto pelos olhos do futuro

Equilibrando ação, humor e drama, essa continuação do reboot de 2009 é tão eficiente quanto seu antecessor, embora derrape um pouco ao prestar uma excessiva homenagem ao passado da própria franquia.

Em 2009, “Star Trek” (ou “Jornada nas Estrelas” para os mais tradicionalistas) foi resgatada com sucesso na telona pelo cineasta J.J. Abrams depois de alguns anos no limbo, ganhando um proverbial banho de loja, voltando com uma roupagem mais moderna e sexy, mas sem descaracterizar os personagens clássicos que deram uma vida longa e próspera à franquia nas mais diversas mídias.

Um dos maiores méritos de Abrams foi voltar ao passado da série, mas deixar seu futuro em aberto, rompendo com o cânone estabelecido por mais de quatro décadas de modo respeitoso, o que lhe permitiria manter o suspense sobre o destino da tripulação da Enterprise nas empreitadas seguintes e salvaguardar o clima de novidade que marcou sua estreia.

Pois bem, nesta sequência, “Além da Escuridão – Star Trek”, o diretor e sua equipe (os roteiristas Roberto Orci, Alex Kurtzman e Damon Lindelof) acertam em cheio ao lidar ao usar o futuro da humanidade como alegoria para problemas do presente, mas derrapam um pouco nas homenagens que prestam ao passado de “Jornada” em si, pesando a mão no chamado fanservice em alguns momentos.

Mesmo passado algum tempo desde os eventos de “Star Trek”, a tripulação da Enterprise ainda não está funcionando exatamente como um relógio, muito disso por conta da arrogância ainda indomada do Capitão Jim Kirk (Chris Pine), cujos conflitos com seu lógico primeiro oficial, Sr. Spock (Zachary Quinto) quase lhe custam seu comando. Quando o terrorista John Harrison (Benedict Cumberbath) ataca a Frota Estelar de modo brutal, Kirk sofre uma perda pessoal que lhe coloca em uma missão de vingança.

Alguns fãs podem ter encarado com certa desconfiança a premissa, crendo que esta contraria os princípios otimistas que guiaram a criação de “Jornada nas Estrelas” por Gene Roddenberry na década de 1960. Mas são justamente esses princípios que estão em jogo na fita. A própria origem de John Harrison mostra que a luminosa fotografia que vemos da Federação esconde um sombrio negativo, com interesses belicistas de uma superpotência criando o próprio monstro que ameaça destruí-la, um tema recorrente em nossa história recente.

Além desse escopo macro, o longa ainda imprime uma forte tensão nas relações de Kirk com seus amigos mais próximos, especialmente com o estado emocional comprometido do personagem, fazendo-o tomar decisões que contrariam as bússolas morias de seus companheiros.

Neste sentido, o trabalho de Chris Pine merece aplausos, com seu Jim Kirk tendo um belo arco de amadurecimento, pontuado especialmente em um pedido de desculpas. Sua química com Zachary Quinto continua sensacional, com ótimos diálogos entre os dois atores. Quinto, por sua vez, vê seu Spock tendo de lidar ainda com as perdas que sofreu anteriormente, espelhando o atual dilema do Capitão.

A despeito da densidade dos elementos principais do plot, o texto é temperado com um humor bem dosado, que não distrai o público do que está em jogo e permite a história fluir de maneira mais leve, em um delicado e raro equilíbrio, perdido apenas aqui e ali, como na inadequada Discussão de Relacionamento entre Spock e Uhura (Zoe Saldana) durante o ponto crítico de uma complicada operação.

A quantidade plural de personagens não prejudica os atores, sendo difícil apontar um só destaque no elenco, cujo ótimo e homogêneo desempenho é o ponto mais forte da produção. Simon Pegg, Karl Urban, John Chu e Zoe Saldana demonstram a evolução crescente de Scotty, McCoy, Sulu e Uhura, ressaltando a competência e personalidade de cada um dos icônicos tripulantes da Enterprise.

Enquanto Pine e Quinto continuam a representar a paixão e a lógica dentro do filme (com algumas inversões de papéis bem colocadas), é fascinante ver o verdadeiro tour de force que é a performance de Benedict Cumberbatch como o antagonista principal da película. O britânico dá ao vilão uma imponência assustadora através de seu trabalho vocal e postura física, ambos compatíveis com a força do seu papel, embora uma maior eloquência em seus diálogos fosse esperada.

As duas outras novidades no elenco são Peter Weller e Alice Eve, como o Almirante Marcus e sua filha, Carol. Weller, o eterno Robocop, traz uma obstinação compatível com os objetivos do personagem que vive. Por sua vez, Eve tem pouco a acrescentar além de sua beleza, com seu principal momento na tela, a discussão com o pai, sendo eclipsada por uma exposição gratuita do seu (belo) corpo.

É uma pena que, em seus momentos finais, o roteiro preste uma homenagem excessiva a um dos capítulos anteriores da série, inclusive desperdiçando uma lendária figura da cultura pop em uma ponta sem sentido e inútil, em uma participação que inclusive diminui a própria tripulação da Enterprise, que parecem crianças pedindo a ajuda do pai.

Essa última meia hora ainda é marcada pela recriação quase que passo a passo de uma cena especialmente marcante da franquia, em uma virada dramática que o espectador novato percebe claramente que não será levada até o fim e distrai os já iniciados da história que se desenrola, pois estes percebem que estão apenas revendo algo levemente modificado.

Salvo este tropeção, o filme segue em um ritmo alucinante, mal dando tempo para o público respirar mesmo com mais de duas horas de duração, graças à ágil (mas nunca confusa) montagem de Maryann Brandon e Mary Jo Markey, que ainda arrumam tempo para fazer algumas rimas visuais, como a que envolve dois copos no começo da projeção.

Os efeitos especiais de primeira são compatíveis com os elevados valores de produção e a direção de arte consegue tirar do interior da Enterprise o visual excessivamente industrial de antes, com a nave de exploração, sempre fotografada em tons claros e bem iluminada contrastando bem com a sombria U.S.S. Vengeance, que muito lembra um submarino de combate oitentista. Planetas e civilizações alienígenas também marcam presença, com destaque para a nova encarnação dos perigosos klingons, agora com um visual mais sinistro, mas sem fugir muito das conhecidas testas enrugadas, em um belo trabalho da equipe de maquiagem.

A conversão para 3D é competente, usando bem os espaços negativos e positivos especialmente quando os personagens são mostrados correndo em ambientes exóticos e quando a Enterprise entra em dobra, mas a tecnologia não acrescenta nada à narrativa, servindo apenas como um artifício visual. A trilha de Michael Giacchino mantém o tema principal criado no episódio anterior como base, moldando-o com as nuances mais pesadas propostas pelo longa.

Mesmo com os problemas em seu último ato, “Além da Escuridão – Star Trek” é um sucessor digno do ótimo reboot que o antecedeu, amadurecendo temas que foram lá apresentados e aprofundando as relações entre os protagonistas. Esperemos que os capítulos vindouros deixem de lado os destinos já conhecidos e se aventurem aonde ninguém jamais esteve.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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