Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 28 de julho de 2012

Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012): uma conclusão épica

Christopher Nolan pode não ter entregue um filme irrepreensível, mas é impossível não aplaudir de pé seu último trabalho com o homem-morcego.

Vejo que tenho um santuário em seus corações, e nos corações de seus descendentes, por várias gerações”.  Charles Dickens, em “Um Conto de Duas Cidades”.

Christopher Nolan declarou que sua inspiração para este “Batman – O Cavaleiro das Trevs Ressurge” foi o livro “Um Conto de Duas Cidades”, de Charles Dickens. Tal obra literária abre com a frase “Era o melhor dos tempos. Era o pior dos tempos”. Certamente, ela serve para descrever muito bem o estado de Gotham City e do personagem-título da fita.

Aqui, percebemos finalmente a verdadeira natureza da trilogia do cruzado de capa, iniciada em 2005 com “Batman Begins”. Fundem-se de maneira monumental os temas daquele primeiro filme e de sua continuação, “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, nos trazendo a este clímax para o drama vivido por seus personagens, sempre buscando criar um desfecho para os arcos iniciados sete anos antes.

Após Batman (Christian Bale) assumir a culpa pelos crimes de Harvey Dent, este se tornou um proscrito e sumiu na noite, não sendo visto em Gotham há quase uma década. Seu alter-ego, Bruce Wayne, se fechou em um exílio voluntário em sua mansão, tendo a companhia apenas de seu fiel mordomo, Alfred (Michael Caine), suscitando até mesmo pequenos rumores sobre sua condição física e sanidade.

As mentiras de Batman e de Jim Gordon (Gary Oldman) criaram uma paz falaciosa, fadada a não durar. Wayne é rechamado à vida quando é roubado pela linda gatuna Selina Kyle (Anne Hathaway) e com o aparecimento da bela filantropa Miranda Tate (Marion Cotillard) e do idealista policial John Blake (Joseph Gordon-Levitt), que investiga um mal que parece ter se instalado no coração de Gotham.

Surge então Bane (Tom Hardy), terrorista mascarado treinado pelo antigo mentor de Bruce, Ra’s Al Ghul (Liam Neeson), que busca completar a obra de seu antigo mestre com a ruína de Gotham e Batman. Cercado por todos os lados, Bruce Wayne deverá abraçar sua outra persona mais uma vez, ressurgindo para o seu maior triunfo ou para sua queda final.

O roteiro de Christopher e Jonathan Nolan para a trilogia é deveras operístico, fazendo com que tomadas e diálogos-chave dos filmes anteriores formem fascinantes rimas narrativas com este terceiro capítulo, tornando quase que obrigatória uma nova visita àqueles longas, que acabam fortalecidos por esta nova empreitada cinematográfica.

Vários momentos da produção parecem arrancados das páginas de algumas HQs. Durante as quase três horas de projeção do longa, os fãs reconhecerão tomadas que remetem diretamente às sagas “A Queda do Morcego”, “O Messias” e “Terra de Ninguém”, diálogos tirados de “O Cavaleiro das Trevas” e até mesmo alguns temas da fita ecoam em obras que não pertencem à franquia Batman como “Watchmen” e “V de Vingança”.

Nolan não se vê limitado pelas obras originais, mas não se furta a homenageá-las. Paradoxalmente, o cineasta não nega sua visão própria do personagem, afinal trata-se da conclusão de uma história que ele vem contando. De todo modo “Ressurge” é seu trabalho mais próximo às origens quadrinísticas do Homem-Morcego. Tal mistura funciona, com a película dialogando com os fãs de longa data, mas jamais alienando a plateia que nunca abriu uma revista sequer.

A profecia do Coringa no segundo filme de que a presença de Batman mudou tudo se mostra verdadeira. O surgimento de elementos mais fantásticos naquele mundo criado por Nolan tão próximo do nosso é uma decorrência lógica do surgimento do Cavaleiro das Trevas. Mesmo os momentos mais fantasiosos são mesmo que parcialmente ancorados na realidade.

Muito disso se deve à preferência de Nolan por efeitos práticos, só lançando mão de computação gráfica em último caso. Some-se isso à miríade de cenários espetaculares e completamente diferentes entre si que vemos e à direção de arte espetacular do longa, que chega a dar certa vazão até mesmo à paixão do cineasta pelo expressionismo alemão, quando nos mostra uma corte pervertida.

Tudo isso é fotografado de maneira fantástica por Wally Pfeister, colaborador habitual de Nolan. Há um belo contraste na paleta de cores de Pfeister que espelha muito bem a amplitude do espectro emocional do filme, desde a sombria tristeza de Bruce, a frieza de uma morte iminente e até uma idílica – e talvez impossível – possibilidade de alegria.

Depois do destaque dado ao Coringa no capítulo anterior da saga, esperava-se que Batman ganhasse mais tempo de tela nesta conclusão. Em verdade, o surgimento de tantos novos personagens fez com que as aparições do morcego fossem relativamente econômicas. Os holofotes se voltam para Bruce Wayne, mesmo com o protagonista sendo tirado de cena durante parte do segundo ato para ser reconstruído, sendo essa queda e ascensão o ponto focal da fita.

Psicologicamente, mergulhamos a fundo nas motivações dos atos de Bruce, com Christian Bale fazendo um magnífico trabalho, especialmente quando surge ao lado de Michael Caine, cujo afetuoso e paternal Alfred pode lhe render uma justa indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante.

Enquanto, com sua habitual competência, Gary Oldman nos expõe o conflito que o honesto Gordon sente ao ocultar o terrível segredo de Harvey Dent e Morgan Freeman esbanja carisma com seu Lucius Fox, três novatos na franquia surpreendem. Anne Hathaway torna fácil cair de quatro por sua Selina Kyle, que se mostra tão boa atriz quanto a própria Hathaway, além de tremendamente perigosa, quase como uma versão femme fatale de Diabolique, possuindo um código moral deveras peculiar.

Joseph Gordon-Levitt também chega com bastante força através de seu John Blake. Levitt compõe este obstinado policial com uma energia impactante, sendo ele um dos motores que tira Bruce de sua inércia. Interessante notar como o personagem foi montado com características de figuras bastante conhecidas dos fãs, que se divertirão bastante ao reconhecer tais traços.

Tom Hardy caiu como uma luva para o papel de Bane. Tendo boa parte de seu rosto oculta pela máscara do personagem, Hardy foi obrigado a explorar o lado físico de sua interpretação, desde o seu olhar até a sua postura, sempre intimidadora. Essa presença física maciça, ressaltada pelo modo como é fotografado, traz de volta a figura imponente que o ator já havia nos apresentado em filmes como “Bronson” e “Guerreiro”.

Mas Bane não é apenas força bruta, possuindo um discurso perigosamente populista, visando seduzir os desamparados. Isso somado à tenebrosa e deveras eloquente voz do terrorista, apropriadamente lembrando a de Liam Neeson, e certamente o público verá um pouco de Darth Vader no vilão, criando uma figura poderosa física e mentalmente.

Quando Batman, Bane e Selina aparecem em combate, fica óbvio que Nolan fora influenciado pelos games “Arkham Asylum” e “Arkham City”, principalmente quando há uma multiplicidade de oponentes. Em momentos mais ambiciosos, como na cena de abertura, a amplitude da ação chega a impressionar, mesmo que a busca pela censura PG-13 prejudique um pouco em momentos que deveriam ter mais peso, como no derradeiro embate entre as forças de Bane e da polícia, que sofreu muito pela assepsia imposta à produção.

Certas falas excessivamente forçadas chegam sim a incomodar (algo que acontece muito com a personagem de Marion Cotillard, por exemplo), uma consequência do já citado tom operístico imposto pelos realizadores. Tal ritmo reverbera na magnífica trilha sonora de Hans Zimmer, que é um dos grandes trunfos da produção, sendo impossível conceber este longa sem a colaboração de Zimmer.

A montagem de Lee Smith funciona como um todo, existem alguns soluços pontuais no trabalho. Certos diálogos no primeiro ato são muito entrecortados e a cronologia da luta final é um pouco atrapalhada, mas Smith compensa esses tropeços em belas montagens paralelas, como na explosiva sequência que nos revela o plano de Bane.

A despeito de suas imperfeições, “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge” cumpre com seus intentos ambiciosos, entregando uma poderosíssima conclusão para a saga de seu herói. Recomendado.

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Thiago Siqueira
 é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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