Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 18 de junho de 2010

Kick-Ass – Quebrando Tudo (2010): um filme de super-heróis com muito conteúdo

Divertido, anárquico, subversivo e ultraviolento, esta adaptação dos quadrinhos escritos por Mark Millar e desenhados por John Romita Jr. é simplesmente de arrebentar!

Em 2009, “Watchmen – O Filme” mostrou de uma forma séria a interferência de superseres em um mundo mais próximo do “real”. No entanto, como a história se passava em plena Guerra Fria, situações do nosso cotidiano não podiam ser mostradas. Já este “Kick-Ass – Quebrando Tudo” explora todas as idiossincrasias de nossa sociedade de consumo rápido de maneira visceral e bem sarcástica.

Aliviando um pouco (só um pouco mesmo) o cinismo presente na graphic novel escrita pelo escocês Mark Millar e ilustrada pelo americano John Romita Jr., o filme narra a trajetória heróica nada usual do adolescente Dave Lizewski (Aaron Johnson), um rapaz fanático por HQs  absolutamente comum. Nada de aranha radioativa, passado trágico ou herança bilionária. A grande característica de Dave é apenas ser mais um adolescente no meio de tantos.

No entanto, o rapaz começa a se perguntar como ninguém ao menos tentou ser um super-herói. Com muita vontade, alguma poses, uma certa dose de loucura e uma roupa de mergulho customizada, Dave se torna o Kick-Ass, primeiro herói de sua cidade. Após uma estreia que lhe rendeu uma facada e um atropelamento (assim como placas de metal nos ossos e uma resistência ampliada à dor), Kick-Ass acaba se tornando um fenômeno mundial graças ao flagra de suas ações no YouTube.

Agora uma celebridade instantânea, o alter-ego de Dave acaba se transformando em um fenômeno cultural e chamando a atenção da dupla Big Daddy (Nicolas Cage) e Hit Girl (Chloe Moretz), pai e filha que acabam com criminosos da maneira mais brutal possível, algo que contrasta com a natureza doce de sua relação. Já o chefão do crime Frank (Mark Strong) vê seus negócios sendo ameaçados por esses novos “heróis”, mas seu filho Chris (Christopher Mintz-Plasse), também um fanático por gibis, tem algumas ideias sobre como lidar com essa febre heróica.

Escrito por Jane Goldman e pelo diretor Matthew Vaughn, o roteiro leva as referências além dos quadrinhos e brinca com o tema das adaptações de HQs para as telas e até mesmo com filmes fora desse nicho. Aliás, fica fácil pensar que até mesmo as mudanças feitas em relação ao original são piadas internas sobre transposições dos quadrinhos para o cinema. É difícil não ver as cenas de “treinamento” de Kick-Ass registradas pelas câmeras de Vaughn e não lembrar do primeiro “Homem-Aranha”, em uma homenagem óbvia.

A narrativa adotada por Vaughn, aliás, também nos remete a “Robocop – O Policial do Futuro”, de Paul Verhoven, no uso de noticiários dentro da fita e, trazendo para o nosso cotidiano, adicione isto a vídeos do YouTube e páginas do Facebook. Até no uso estilizado e, por vezes, até hilário da violência, o cineasta nos remete ao seu companheiro de trabalho holandês, com cenas que chocam, mas, ao mesmo tempo, nos fazem rir. No melhor estilo “Kill Bill”, ainda temos uma sequência animada contando a origem de um dos personagens (seguindo o traço de John Romita Jr.) e, para completar, o diretor ainda nos brinda com um inspirado momento de deixar os gamers fanáticos por jogos de tiro em primeira pessoa salivando.

Outro filme que com certeza será lembrado pelos cinéfilos ao assistir “Kick-Ass – Quebrando Tudo” é “O Profissional”, graças a Hit-Girl, personagem vivida com vivacidade empolgante pela ótima Chloe Moretz. É incrível como essa atriz mirim rouba a cena toda vez que aparece, interpretando sua “heroína” como se fosse uma versão menor e de saias de Clint Eastwood em “Perseguidor Implacável” se Dirty Harry fosse aficionado por cultura pop.

O relacionamento da garota com Big Daddy (Paizão) é outro ponto forte do filme. Nicolas Cage, um notório fã de quadrinhos, encarna sua versão do Batman da série de TV do personagem dos anos 1960 com pausas estranhíssimas e maneirismos hilários quando coloca seu uniforme de combatente do crime, deixando Adam West orgulhoso. Mas sem ele, encarnando somente o pai amoroso da menina Maddy, vemos Cage conseguir transformar atos de violência brutais em gestos de ternura e amor, algo feito com uma sensibilidade ímpar graças à química entre ele e Moretz, bem como pela direção precisa do cineasta Vaughn.

Já o próprio Dave (ou Kick-Ass) tem a difícil missão de representar o próprio espectador dentro daquela trama. É ele quem passa pelo crescimento brutal de jovem modismo a um possível herói, encarando todas as responsabilidades que vem com aquela estranha vestimenta de mergulho. É pelos olhos de Dave que vemos o fenômeno pop por ele criado se tornar uma criatura própria e sair de suas mãos e o ator Aaron Johnson consegue expressar esse misto de deslumbre e terror absoluto muito bem. O fato de Dave ser “comum”, ao contrário dos extraordinários Big Daddy e Hit Girl, é justamente o que o torna tão interessante quanto o duo formado por aqueles dois.

Do lado dos “vilões” temos o sempre fabuloso Mark Strong como o gangster Frank, que tem de encarar o desafio de gerenciar um império criminoso enquanto lida com o fenômeno heróico e criar o seu filho adolescente, Chris, tentando sempre dar um bom exemplo para ele, do seu próprio modo, é claro (há uma hilária cena envolvendo consumo de cocaína que ilustra bem este paradoxo). O filho do mafioso ganha vida por meio do eterno McLovin, Christopher Mintz-Plasse, que aparenta estar se divertindo muito com o personagem, principalmente quando este encarna sua faceta uniformizada conhecida como Red Mist.

Interessante notar que a trajetória e o relacionamento de todos os personagens principais apresentam uma orgânica e intrincada rima narrativa que, além de denotar as semelhanças em suas jornadas, começa a deslocar a trama, de maneira proposital, para longe de sua “realidade” inicial (bem próxima do nosso cotidiano) para cada vez mais perto do universo dos quadrinhos.

O design de produção e a fotografia funcionam muito bem ao passar a impressão de realidade que o filme deseja. Nesse sentido, temos de dar crédito aos uniformes do longa, que aparentam propositadamente destoar daquele mundo, criando a sensação de estranheza que um indivíduo vestido daquele modo nos transmitiria. Há de se falar ainda da maravilhosa trilha sonora da fita, que empolga o público, seja com as canções selecionadas para a película ou com sua trilha incidental.

Se “Pulp Fiction – Tempo de Violência” trouxe toda uma nova energia para os filmes envolvendo criminosos, “Kick Ass – Quebrando Tudo” traz um efeito análogo para os filmes que trazem super-heróis em seu conteúdo. E, acredite, vindo de um fã declarado de HQs e cinema (e de Quentin Tarantino em especial) isto é um tremendo de um elogio. Recomendado!

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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