Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Coisas que Perdemos Pelo Caminho

Um filme sobre a superação dos vícios que adquirimos diariamente, sobre a maneira como enfrentamos a morte, mas ainda além: um filme sobre proximidade. Se estar próximo e deixar próximo.

O casal Audrey (Halle Berry, da franquia “X-Men”) e Brian Burke (David Duchovny, de “Totalmente Apaixonados”) tem o casamento dos sonhos de muita gente. Eles vivem bem financeiramente, possuem uma casa maravilhosa e podem dar do melhor para seus dois filhos. Mas isso é só um pano de fundo, porque basta assistirmos mais sobre a história dessa família para perceber que o que eles realmente têm de mais importante são uns aos outros. E digo isso sem nenhum medo de parecer clichê, até porque, por incrível que pareça, quando lemos a sinopse, esse filme não é exatamente esperado. Melhor: é surpreendente.

O mundo de Audrey é subitamente sacudido quando Brian morre ao tentar ajudar uma mulher que sofria violência doméstica na rua. Magoada e recusando-se a conformar-se com o ocorrido, assim como seus filhos, ela inesperadamente convida o amigo do marido que é viciado em drogas para morar em sua garagem. Nem o próprio Jerry entende essa idéia, já que até onde ele sabia, Audrey o odiava. Ela mesma não consegue explicar o impulso. Resta acrescentar que o amigo é ninguém menos que o talentoso Benício Del Toro (“21 Gramas”).

Logo depois que Berry conquistou seu disputado Oscar de Melhor Atriz em “A Última Ceia”, ela começou a embarcar em produções que muitas vezes mostravam-se sem sentido para alguém que havia provado tanto talento. Me perguntei várias vezes quando veria a atriz novamente em um filme que realmente valesse a pena, que mostrasse que ela ainda não estava perdida. Esse dia chegou. Na pele da mulher que simplesmente se recusa a aceitar a morte do marido, Berry está segura. Assim como os demais atores do elenco, ela está, literalmente, de cara lavada. Tudo é natural.

Falar de Del Toro é difícil, porque sempre pode cair num carretel de elogios sem fim, que acabam enfadando a quem lê. Mas a verdade é que poucos atores que estão soltos por Hollywood atualmente têm a capacidade e a profundidade para encarar um papel como esse. Detalhista, observador e muito sutil, ele dá vida a Jerry, nos fazendo conhecer essa figura que aparenta ser tão problemática, e que consegue ser ao mesmo tempo tão carismático. Isso tudo sem ser óbvio, o que caracteriza por assim dizer o sucesso do ator porto-riquenho.

Fato é que ao entrar no cinema para assistir esse trabalho, me senti quase relutante. O elenco parecia interessante (leia-se: a presença de Del Toro), o título soava bom e a direção da dinamarquesa Susanne Bier imediatamente ganhou minha atenção. Mas uma pergunta passou pela minha cabeça ao ler a sinopse: será que eu realmente preciso assistir um drama desse tipo? A questão era simples, mas enfatizava exatamente uma das principais questões apresentadas no longa: a maneira que nós temos de enfrentar situações tristes ou difíceis. Ninguém quer isso nem na própria vida, imagine assistir na vida dos outros!

A personagem de Halle Berry prefere não enfrentar a situação, ela detesta pensar que pode vir a aceitar que o marido não está mais ali. Usa Jerry para descontar toda sua frustração, pois, assim como ela explicita em determinado momento, como pode um homem tão acabado como ele estar vivo e um estruturado pai de família ter morrido de forma tão trágica? Ela chega a afirmar que não considera aquilo justo na cara dele.

A proximidade da câmera ágil de Susanne Bier (“Corações Apaixonados”) é impressionante. Ela consegue primeiro transmitir toda essa cumplicidade e proximidade daquele casal, para daí em diante, mostrar a relação construída entre Audrey e Jerry. Se chega a ser sufocante ou não, fato é que muita gente vai se sentir incomodada com tanta proximidade. A obsessão com olhos, bocas, mãos e pequenos detalhes que rapidamente fugiriam da atenção de alguns diretores previsíveis, ganha força nas mãos de Bier. Ela ganha mais pela insinuação que pela excessiva explicação dos fatos. Ela não precisa explicitar mais do que já faz: está ali para você ver e sentir. E lutar, e recear.

Aqui, todas as funções do filme estão diretamente interligados: a câmera, o roteiro, os atores e até mesmo a falta de maquiagem. Até a trilha segue esse clima: é limpa e simples.

Agora uma das coisas mais surpreendentes é descobrir que este é o primeiro roteiro escrito por Allan Loeb. Sem arrodeios, direto e duro, mas também de afeição, de cuidados, de querer-bem. Nada é óbvio, tudo está trabalhado com maestria, e as relações de proximidade incomodam mesmo. É um defeito humano ter mesmo disso, de estar tão perto ao ponto que esses personagens estão uns dos outros. O medo de precisar, o medo de se entregar é outra temática muito bem colocada aqui. Em nenhum momento Jerry e Audrey são colocados como um futuro casal: são apenas duas pessoas que precisam uma da outra de maneiras que não conseguem sequer explicar.

Sem dúvida é um filme interessante, daqueles que fazem você sair e ficar pensando sobre, digerindo aos poucos.

Beatriz Diogo
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