Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 25 de maio de 2007

Sunshine – Alerta Solar

"Sunshine - Alerta Solar" é uma resposta àqueles que acham que faroestes espaciais como "Star Wars" são exemplos de ficção científica. Um exemplar puro do gênero que nos deu obras como "2001 - Uma Odisséia no Espaço", este filme pode ser facilmente considerado como um dos melhores do ano. Simplesmente imperdível.

Publicidade no cinema é algo interessante. Muitas vezes as peças publicitárias liberadas pelas distribuidoras dão uma expectativa exarcebada em relação ao respectivo filme, geralmente seguida de um banho de água fria ao assisti-lo. "Sunshine – Alerta Solar" é uma tremenda exceção a essa triste realidade. Tendo um trailer mal editado e um pôster com uma frase de efeito ridícula, o filme surpreende por possuir qualidades ímpares e suscitar questionamentos profundos sem apelar para a psicologia de botequim, tão comum em produções cinematográficas que querem se passar por profundas.

Ao assistir "Sunshine", não espere ver um similar de "Star Wars" ou de "Jornada nas Estrelas", mas sim um filme extremamente denso, que encontra eco nos ótimos "2001 – Uma Odisséia no Espaço" e, citando um exemplo mais recente, "Fonte da Vida", apresentando personagens complexos em situações-limite. Neste filme, o diretor Danny Boyle emula um pouco o lendário Stanley Kubrick, mas jamais esquecendo de quem realmente é, nos proporcionando uma obra realmente original, se utilizando de um inteligentíssimo roteiro escrito por Alex Garland, com quem trabalhou no ótimo "Extermínio".

O filme começa com um monólogo de seu protagonista, Robert Capa (Cillian Murphy), nos contando o pano de fundo da trama. O nosso sol está morrendo e uma coalizão internacional criou o projeto Ícaro numa tentativa desesperada de salvar o nosso astro-rei. A primeira nave Ícarus falhou e seu destino é ignorado. A Ícarus II, tripulada por Capa e outros sete, entre cientistas e astronautas, está se aproximando de seu destino. São oito pessoas presas num ambiente confinado, numa situação extremamente estressante por 16 meses (ponto onde o filme começa). Não é difícil deduzir que a situação a bordo lembra mais uma panela de pressão que um ambiente pacífico. A missão, em teoria, é simples: chegar à órbita solar, jogar a carga (uma bomba estelar, feita com todo o material de fissão existente no planeta) e voltar. Só existe um problema: quando se tem uma missão tão arriscada e se coloca um elemento tão instável quanto o ser humano, coisas ruins podem acontecer.

Os filmes anteriores de Boyle lidavam exatamente com o tema da dualidade do homem, seu lado bom e seu lado destrutivo. Aqui, ele alcança seus extremos em tal análise. Ao mesmo tempo que presenciamos atos de extrema abnegação por parte dos tripulantes da nave, também vemos ações extremamente egoístas, de pessoas que buscam apenas satisfazer suas ambições pessoais de serem especiais. Uma grande ironia do filme é se utilizar de uma arma de destruição em massa, uma bomba do tamanho da ilha de Manhathan, para salvar todo o planeta. Mas a grande questão do filme é religiosa. As maiores atrocidades vistas em tela são cometidas "em nome de Deus". Por várias vezes a submissão excessiva, o fanatismo religioso, é atacado no filme. Duas frases me chamaram muito a atenção. "Meu Deus, não o seu" e "Deus me mandou que levasse todos ao paraíso". São palavras proferidas todos os dias por fanáticos religiosos, seja qual for a religião que sigam, para justificar atos cruéis. Mas se engana quem acha que a fria razão é poupada de ataques durante o filme. Por várias vezes, os personagens se vêem revoltados pela frieza exigida em suas decisões, querendo gritar "Dane-se a lógica" e seguir sua humanidade, mas é impossível fazer isso com bilhões de vidas em jogo.

O filme conta com tremendas atuações, mas os destaques vão para Cillian Murphy (elogiar o trabalho deste ator já está virando lugar-comum) e para o carismático Chris Evans. Os jovens atores simplesmente roubam a cena e têm uma química incomum na estranha relação de rivalidade que seus personagens possuem. Murphy, como o isolado físico Capa, parece ser alguém de poucas palavras. Nas reuniões está sempre sentado distante e parece se abrir apenas com sua namorada, Cassie, e nas mensagens que envia a seus parentes. Sua função na nave é de suma importância, já que ele é responsável pela "entrega". Nas palavras do personagem, a situação é bastante simples: "8 astronautas numa nave presa a uma bomba. A minha bomba". Murphy é extremamente feliz em retratar o peso da responsabilidade que Capa carrega consigo. Já seu principal co-tripulante é Mace, o piloto da Icarus II. Mace é um soldado e, como tal, ele se concentra apenas na missão, não existindo nada mais para ele além disso, o que o coloca constantemente em colisão com membros mais "humanos". Apenas em duas ocasiões ele demonstra seus sentimentos e as duas lhe colocam batendo de frente com Robert. Mais uma ironia é que, apesar das brigas dos dois, Mace, por várias vezes, coloca o bem estar de Capa acima de tudo, já que ele é o único capaz de operar a bomba. Porém deixa que seus sentimentos em relação a ele se sobreponham uma vez.

Partindo agora para os outros membros da tripulação, comecemos pelo interessante psicólogo Dr. Searle, interpretado por Cliff Curtis (curiosamente, seu último filme fora o já citado "Fonte da Vida"). Curtis retrata bem a fixação de Searle pela luminosidade solar, num estranho e perigoso hobby de seu personagem. Apesar de ser o responsável pela saúde mental dos tripulantes da Ícarus II é, com certeza, o mais excêntrico. O Capitão Kaneda, vivido por Hiroyuki Sanada, é o mais centrado da tripulação, um líder nato, capaz de pesar todas as suas decisões e de grandes sacrifícios. Sanada consegue dar uma aura de respeitabilidade a seu personagem, mostrando logo que ele é merecedor do respeito que seus tripulantes têm para com ele. A botânica Cory, vivida por Michelle Yeoh, é extremamente dedicada a seu dever, cuidando das plantas da nave como se fossem outro tripulante, dando-lhes o devido respeito, já que são elas que produzem o ar respirado na Ícarus II. Yeoh, geralmente intérprete de mulheres fortes, e aqui se mostra mais frágil do que nunca. A Cassie de Rose Byrne encontra mais respaldo em seus momentos de ternura com Capa. Os diálogos dos dois são lembretes da humanidade daqueles indivíduos. O oficial de comunicações Harvey, vivido por Troy Garity, é inútil e sabe disso. Apesar de ser o segundo em comando na nave, sua pouca importância o faz descartável, algo em nada lhe agrada, gerando vários conflitos durante o filme. Trey, matemático vivido por Benedict Wong, é um dos principais catalizadores de uma situação explosiva vivenciada na Ícarus II. É um personagem bastante denso, apesar de ter pouco tempo em cena. O personagem mais ameaçador é vivido de forma extremamente assustadora por Mark Strong. Não entrarei em detalhes sobre ele para não revelar segredos sobre a trama.

A equipe técnica dá um show a parte. Danny Boyle ressuscita características de vários de seus filmes passados, mais notoriamente "Trainspotting – Sem Limites", "Por Uma Vida Menos Ordinária" e "Extermínio", com quadros belíssimos (destaco as cenas de Kaneda e Capa com os trajes, Cory com o "bebê" e todo o clímax do filme). O diretor dá um incrível tom ao filme, que possui um tipo de tensão muito parecida com a presente na primeira metade de "Alien – O Oitavo Passageiro", dirigido por Ridley Scott. Porém é palpável a influência de Stanley Kubrick na direção de Boyle. Não se trata de uma mera imitação, mas sim de real influência, que deixaria o diretor de "2001 – Uma Odisséia no Espaço" orgulhoso. O trabalho de Boyle, no entanto, se perderia sem o apoio do editor Chris Gill (que colaborou com Boyle nos seus últimos filmes, "Caiu do Céu" e "Extermínio"), imprimindo o ritmo perfeito à produção e ao fenomenal trabalho de fotografia feito por Alwin H. Kuchler, que teve o desafio de criar um aspecto etéreo e misterioso em ambientes excessivamente iluminados pela luz solar, algo semelhante ao seu trabalho em "Código 46", outra belíssima ficção, esta dirigida por Michael Winterbottom. Não posso deixar de mencionar o trabalho de Mark Tildesley como design de produção, trabalhando para dar o tom mais realista possível à produção, e a incrível trilha sonora presente durante toda a projeção.

Respeitando o gênero em que se insere (existem referências a obras como o seriado "Babylon 5" – a frase "a nossa última e melhor esperança" -, o clássico anime "Akira" – o nome do personagem "Kaneda" – e ao já citado "Fonte da Vida", com a citação da frase "Termine"), "Sunshine – Alerta Solar" é um filme incrivelmente tenso e realista, sendo, uma análise do comportamento humano, mostrando todas as facetas desse animal misterioso que jaz em cada um de nós. Por isso, o filme alcança o topo dentre os filmes lançados até então em 2007. Definitivamente, uma nova obra-prima de Danny Boyle, mais uma vez mostrando que seu talento não encontra limitações nos diferentes ramos da sétima arte.

Observação: Durante os créditos, duas ótimas músicas embalam uma montagem bastante interessante, composta pelos momentos mais dramáticos do filme.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre