Cinema com Rapadura

Críticas   quinta-feira, 08 de fevereiro de 2018

Sem Amor (2017): um retrato da decadência da sociedade

Investindo no simbolismo, o longa brilha ao conseguir o equilíbrio perfeito entre criticar a deterioração da sociedade atual e retratar o imenso vazio no relacionamento de um casal.

Em uma sociedade cada vez mais preocupada com a felicidade momentânea, proporcionada pelas mais diversas futilidades, a existência de um filme como “Sem Amor” é extremamente necessária para confrontar esta geração, mostrando a decadência em que a população se encontra e prevendo a piora que ainda está por vir. Para isto, o diretor Andrey Zvyagintsev (“Leviatã”) se utiliza de um evento comum, numa esfera micro, para abordar com bastante realismo e precisão o tema no grande espectro.

A pesada trama acompanha os cônjuges Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin) em vias de separação. Enquanto não conseguem vender o imóvel que dividem, eles vivem sob o mesmo teto em meio a muitas discussões, causando sofrimento ao jovem Alyosha (Matvey Novikov), filho de 12 anos do casal. Considerado um estorvo por ambos, certo dia o garoto solitário desaparece sem deixar pistas, obrigando os pais a se unirem para enfrentar esta situação.

A história pode parecer clichê, mas o diretor russo subverte completamente as expectativas para mostrar, com muita crueza, a mudança de valores que ocorre na sociedade contemporânea. Enquanto Zhenya (que entrega a atuação de maior destaque do longa) está sempre vidrada no celular e nas redes sociais, compartilhando até os momentos mais inoportunos, Boris demonstra se importar apenas com o status que seu casamento proporciona na empresa onde trabalha. Nenhum dos dois manifesta qualquer sentimento de paciência ou afeto pelo filho, que pouco aparece em tela antes de seu desaparecimento, mas consegue retratar com maestria a solidão e o sofrimento que está passando. Destaque para uma cena de cortar o coração onde o menino surge de surpresa, chorando ao ouvir uma das inúmeras discussões dos pais.

O primeiro ato aposta num ritmo cadencioso e bem planejado para desenvolver as personalidades do casal, cada um buscando seguir a vida com seus novos parceiros, além de retratar as características de uma Rússia pós-comunismo, repleta de ruas vazias e prédios desabitados. Outro artifício utilizado é a constante presença de noticiários negativos, mostrando a incapacidade dos personagens de terem empatia por alguém além deles mesmos. A cena onde o diretor deixa sua crítica mais explícita nem envolve os protagonistas, trata-se de uma cena num restaurante onde um grupo de jovens brinda “ao amor e às selfies”, conceitos tratados como opostos durante toda a película.

Abusando do uso de câmeras estáticas, Zvyagintsev nos coloca totalmente imersos na história, obrigando-nos a presenciar discussões constrangedoras ou até mesmo nos posicionando no banco de trás dos carros dos personagens por longos e incômodos trajetos, quase como intrusos ou espiões. O diretor ainda nos força a completar as pontas soltas deixadas propositalmente, como desvendar o estopim do término do relacionamento do casal, nunca mostrado em tela.

Outro ponto de destaque na crítica construída por Zvyagintsev é a frieza da polícia na condução do caso. Por mais “compreensível” que seja o fato do órgão ter cada vez menos efetivo para resolver um crescente número de ocorrências, o reconhecido desinteresse pelo desaparecimento do garoto é tão impactante quanto a demora dos pais em percebê-lo. Em uma única cena, onde Zhenya registra a ocorrência do sumiço de Alyosha, o diretor mostra a ineficiência do poder público em cuidar de todos os problemas dos cidadãos, mas insere na trama um símbolo que retrata o que ainda há de bom na sociedade: o Esquadrão de Busca e Resgate. A ONG é responsável por conduzir os esforços em busca do menino, seja fixando cartazes ou procurando em áreas inóspitas, mostrando o impacto que a união de pessoas comprometidas com uma causa tem na resolução de problemas.

Quando Alyosha desaparece, o filme se transforma em uma busca sem fim, onde fica cada vez mais difícil manter as esperanças por boas notícias. Se isto torna a narrativa um pouco previsível, por outro lado a junção com a belíssima fotografia, recheada de cenas tão frias quanto seus personagens, faz com que as sequências sejam repletas de suspense e aflição. A trilha sonora, utilizando-se tanto de longos silêncios quanto da exacerbação do som ambiente, também ajuda a montar esse ambiente imersivo. Mas os poucos temas musicais são igualmente brilhantes, embora não sigam uma linha melódica única. O primeiro a tocar, logo nos créditos inicias, lembra muito um batimento cardíaco acelerado, contando com notas repetitivas e pulsantes e marcando, com perfeição, o tom bruto e obsessivo que perdura por todo o longa.

Concorrendo pela segunda vez ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (indicado em 2014 por “Leviatã”), Andrey Zvyagintsev transformou uma história trivial em um longa profundo, seco e dotado de conclusões difíceis e problemas capazes de representar não só a realidade russa, mas a de diversos países do mundo (inclusive a nossa). Além disso, ele exige que formulemos respostas e participemos ativamente da trama, tentando instigar o sentimento de que é possível imprimir mudanças na sociedade, desde que façamos algo a respeito.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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