Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 22 de novembro de 2014

Jogos Vorazes – A Esperança: Parte 1 (2014): uma experiência incompleta

Toda a coragem da franquia em explorar visual e tematicamente assuntos e veias temáticas atípicas para os blockbusters voltados para o público juvenil acaba sendo ligeiramente ofuscada pela decisão mercadologica de dividir em duas partes a conclusão da história.

imageÉ maravilhoso como a ficção pode ser usada para montar um mosaico do nosso presente e passado, por vezes apontando de modo assustador como pode ser o nosso futuro. Neste sentido, “Jogos Vorazes – A Esperança: Parte I” merece sim ser louvado. Terceira parte da saga iniciada nos cinemas em 2012, e que vem em um crescendo espantoso (veja meu texto sobre o filme anterior aqui), chega a ser espantoso que a franquia, considerando sua importância financeira partos seus produtores, seja corajosa ao ponto de se desviar tanto do que se podia esperar de um filme blockbuster adolescente.

Primeira parte da adaptação de “A Esperança”, livro de Suzanne Collins que concluiu a versão literária da série, o longa dirigido por Francis Lawrence conta com pouquíssimas cenas de ação, sendo mais focado na guerra midiática entre os rebeldes do Distrito 13 e a tirânica Capital. No meio deste cabo de guerra estão Katniss (Jennifer Lawrence) e Peeta (Josh Hutcherson), cada um deles cooptados – voluntariamente ou não – para um dos lados do conflito como principais garotos-propaganda de suas respectivas facções.

A fita começa logo após os eventos de “Jogos Vorazes – Em Chamas”. O lar de Katniss e Peeta, o paupérrimo Distrito 12, foi obliterado pelas forças da Capital, uma retaliação do Presidente Snow (Donald Sutherland) aos atos de resistência perpetrados pelos vitoriosos dos Jogos Vorazes anteriores. Resgatada pelos rebeldes, Katniss se encontra psicologicamente alquebrada pelas perdas sofridas. Sob a liderança da Presidente do Distrito 13, Alma Coin (Julianne Moore), Katniss se vê obrigada a tornar-se O Tordo, um símbolo de liberdade que irá inspirar as massas dos demais distritos.

Tendo em vista que a narrativa da película é praticamente toda voltada para Katniss (são raros os momentos onde a personagem não está em cena), a ambientação da história segue sua protagonista. Sai o contraste entre a opulência da Capital e a pobreza dos 12 distritos e passamos a explorar junto com a personagem o ambiente sitiado que é o Distrito 13, com rápidas visitas a alguns outros ambientes tocados pela guerra, em especial o Distrito 12.

Katniss mergulha em um ambiente de guerra, onde quase tudo é mergulhado em uma cinzenta praticidade. Os próprios cenários do Distrito 13 lembram mais um submarino de guerra, lineares e apertados. Ver a extrovertida e até então multicolorida Effie (Elizabeth Banks) sem suas extravagantes perucas, maquiagens e roupas estranhas é o maior representante deste choque de realidade para Katniss e para o público. Outro choque é a gradual debilitação de Peeta, retratada com cuidado por Josh Hutcherson, embora sua última cena quebre isso e se mostre um tanto exagerada.

Assim como aconteceu no primeiro filme da saga, é aos poucos que Katniss aceita o papel que o destino lhe impôs. Novamente mostrando uma coragem rara em blockbusters voltados para o público adolescente, Francis Lawrence não se furta em mostrar imagens como corpos calcinados e multidões metralhadas por soldados da Capital. As reações de Katniss nesses momentos colidem com a frieza pragmática de Alma Coin, composta por Julianne Moore como alguém que há muito já passou do ponto de se permitir sentir qualquer paixão. Aliás, é palpável que Coin e Snow possuem mais em comum do que a primeira deixa transparecer (e talvez nem mesmo perceba isso).

O jogo de propaganda montado pelo inteligente Plutarch Heavensbee (Phillip Seymour Hoffman) depende de Katniss, sendo que os discursos e atos da moça, para funcionarem junto ao público, necessitam ser espontâneos e autênticos. Destarte, Jennifer Lawrence se vê bastante exigida. Não apenas por conta da quase onipresença da personagem na narrativa, mas pela gama de emoções que esta requer de Katniss, que abrange desde a garota traumatizada até a guerreira símbolo da rebelião. E, mais uma vez, a jovem atriz se mostra a altura do desafio.

A confiança em Lawrence é tamanha que a produção se dá ao luxo de colocar Sutherland, Hoffman e Moore em participações menores, haja vista que acompanhamos o desenrolar da história basicamente pelos olhos de Katniss. O longa ainda usa isso a seu favor ao colocar a jovem longe das cenas de ação mais elaboradas, relegando-a ao papel de espectadora e criando maior tensão nesses momentos (em dado momento, o longa remete aos bombardeios aéreos alemães na Inglaterra, mostrando uma Katniss acuada e impotente contra o terror que vem do céu).

Mesmo tratando o seu público e seus personagens de forma a jamais subestimá-los, se mostrando até mesmo inclementes em alguns pontos (a cena em que certo personagem diz a Katniss que a atenção dela a ele está condicionada ao sofrimento por ele atravessado é brutal), é uma pena que os produtores tenham sentido a necessidade ordenhar financeiramente o máximo possível da franquia.

A divisão da conclusão em duas partes resultou em uma fita de estrutura quebrada e que simplesmente pára em dado momento. Essa decisão se mostrou inteligente para a saúde financeira da série, conforme os números iniciais de bilheteria, mas diminui o brilho da obra como cinema, além do alto risco de transformar a segunda metade em um interminável clímax, tirando o foco dos momentos introspectivos, grande forte dramático da cinessérie até o momento. A conferir.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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