Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 17 de novembro de 2012

Argo (2012): Ben Affleck recria operação da CIA em sua consagração como cineasta

Forte candidato ao Oscar, longa se mostra um corajoso thriller político sem medo de criticar os EUA, ao mesmo tempo que não esquece o lado humano de sua trama e presta homenagem a Hollywood de outrora.

James Bond e Ethan Hunt são as grandes referências de espiões do cinema. Charmosos e espalhafatosos, eles são que o imaginário popular vê como agentes secretos, graças às suas aventuras na sétima arte. É irônico, portanto, que seja justamente um filme falso o pivô de uma operação de extração inacreditavelmente real, retratada por Ben Affleck em “Argo”.

O roteiro do estreante Chris Terrio, baseado no artigo de Joshuah Bearman “Escape from Tehran” e no livro “Argo – Como a Cia e Hollywood Realizaram o Mais Estranho Resgate da História”, escrito pelo ex-agente da CIA Tony Mendez, tem seu ponto de partida em 1979, com a invasão da embaixada americana no Irã pelos revolucionários seguidores do Aiatolá Khomeini, que resultou na captura de todo o corpo diplomático estadunidense local como refém, exceto seis diplomatas, que escapam para a casa do embaixador canadense (Victor Garber).

Após alguns meses, com a embaixada canadense prestes a ser fechada, o sexteto precisa ser tirado de lá. A missão recai para Mendez (vivido pelo próprio Affleck), um especialista nesse tipo de operação, que, com poucas opções para extraí-los, encontra a única saída em uma operação absurda: montar, com a ajuda de contatos em Hollywood, uma falsa companhia de cinema e, com a desculpa de estar procurando locações exóticas para a ficção científica “Argo” (que nunca será realizada), entrar no Irã como um produtor canadense e tirar os refugiados como membros da sua equipe de produção.

É uma trama que podia facilmente ser transformada em um palanque ufanista para a superioridade dos Estados Unidos. Mas a coragem de Affleck e um distanciamento histórico seguro permitem que o cineasta conte essa trama sem medo de colocar o proverbial dedo na ferida. Logo na introdução da fita nos é mostrado, por meio de storyboards, como as desastrosas intervenções americanas no Irã levaram ao pandemônio político que permitiu a ascensão do Aiatolá Khomeini ao poder naquele país.

Toda essa situação é mostrada de forma realista pelo filme, algo até mesmo ressaltado pela produção ao incluir fotos dos eventos e personagens reais dessa história em seus créditos finais. Além disso, Affleck lança mão de imagens reais durante a própria narrativa, integradas de forma impecável ao desenrolar da trama.

A verossimilhança é tamanha que chegamos até mesmo a estranhar um pouco quando elementos mais cenográficos surgem em cena, como o plano que mostra a praça central da capital iraniana, onde efeitos especiais complementam a paisagem. Apenas a cena da invasão sozinha já é digna de aplausos, mostrada pelo diretor em um crescendo de tensão incrível.

Assim, “Argo” se mostra três filmes em um só. Temos um poderoso thriller político, um drama com refugiados em um país hostil e uma excelente farsa hollywoodiana, explicando a fascinação de Affleck pelo material justamente por sua abrangência. Ao mesmo tempo que o cineasta joga um espelho na política externa de seu país, ele tem a oportunidade de homenagear a própria Hollywood do final dos anos 1970, emulando com sucesso o estilo cinematográfico da época e usando como referência obras como “Todos os Homens do Presidente” e “Três Dias do Condor”.

O diretor e o cinematógrafo Rodrigo Prieto lançam mão de um granulado forte e um estilo de filmagem próprio dos anos 1970, ao optar por  cores quentes e priorizar os rostos dos atores, buscando sempre o ângulo humano na história e a enriquecendo com cada reação do elenco no decorrer da projeção. O longa nunca esquece de valorizar da ótima reconstrução setentista feita pela equipe de direção de arte, cuja contribuição para a narrativa é ímpar para a construção dos personagens por parte do elenco.

Ben Affleck reconhece as próprias limitações como ator e se escala em um papel que prima pela discrição, em um espião mais real e totalmente desprovido de glamour, tal como o George Smiley de “O Espião Que Sabia Demais”. Seu Tony Mendez é um homem cujas habilidades em manter segredos e se manter no background sem ser notado o mantiveram vivo, embora sua vida pessoal tenha sofrido o baque.

Nisso, uma cena em especial, na qual o cineasta divide a tela com Alan Arkin, faz um ótimo paralelo entre o estrago que atuar no mundo da espionagem e na indústria do entretenimento pode causar na vida destes profissionais. Arkin, aliás, está maravilhoso no filme, interpretando com feroz vivacidade o produtor Lester Siegel, um veterano de Hollywood já um tanto desgastado com a indústria, mas que ainda respira cinema.

Não seria impensado prever uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante para Arkin, sem dúvida o grande destaque de um homogêneo elenco que ainda conta com excelentes interpretações de John Goodman (como o maquiador vencedor do Oscar John Chambers, contato da CIA em Hollywood), da sumida Clea DuVall como uma das reféns, e do sempre competente Bryan Cranston como o chefe de Mendez. Affleck ainda se dá o luxo de usar atores do calibre de Phillip Baker Hall, Zeljko Ivanek e Kyle Chandler em pequenas pontas, mostrando a força de seu cast.

A montagem da fita prima não só pelo incrível ritmo dado à narrativa e por conseguir equilibrar todos os núcleos diferentes em uma história coesa, mas também por sua sensibilidade. Em uma cena em especial, Affleck se utiliza da leitura do roteiro de “Argo” para ancorar o escalonamento da crise com os reféns no Irã e o medo crescente nos refugiados na casa do embaixador canadense, em um exemplo brilhante de edição. A trilha sonora de Alexandre Desplat completa o mergulho na ambientação setentista, com o detalhe que o diretor sabe exatamente quando silenciá-la para intensificar a tensão.

Mesmo derrapando um pouco no final, onde até mesmo o próprio Affleck admite ter “exagerado” um pouco para criar mais suspense para a história, “Argo” nos mostra o terceiro trabalho de um cineasta que certamente encontrou o seu rumo, cimentando este ator, outrora conhecido como um canastrão boa-pinta, como um dos mais competentes diretores de sua geração. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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