Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 05 de fevereiro de 2011

Cisne Negro

Novamente trabalhando com o tema da obsessão, o cineasta Darren Aronofsky nos mostra a bela e perturbadora jornada de uma jovem bailarina em uma busca pela perfeição a qualquer custo.

A filmografia de Darren Aronofsky é repleta de filmes que focam na jornada pessoal de seus protagonistas, geralmente guiados por uma obsessão, seja com a busca de um matemático por um padrão universal, a ideia de um homem de livrar-se da morte ou a trajetória de um velho lutador que se define por sua profissão. A despeito deste “Cisne Negro” dialogar bastante com seus trabalhos anteriores, esta mais recente obra do cineasta é sua própria bela e assustadora fera.

A fita é protagonizada por Nina (Natalie Portman), uma pacata e obstinada bailarina ascendente em sua companhia. Enquanto a antiga estrela do grupo, Beth (Winona Ryder), é forçada a se aposentar, Nina é escolhida como a estrela do próximo espetáculo a ser montado pelo exigente diretor Thomas Leroy (Vincent Cassel), uma nova versão de “O Lago dos Cisnes”. Quando Lilly (Mila Kunis), uma talentosa e rebelde bailarina, se junta à Companhia, Nina começa a sofrer as com as cobranças vindas de Thomas e de sua mãe (Barbara Hershey), com a mente da jovem passando a ser abalada por tais pressões.

A dualidade presente no balé “O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky é o ponto-chave do roteiro de Mark Heyman, Andrés Heinz e John McLaughlin. Lá, uma princesa virginal, transformada em cisne branco, disputa o amor de um príncipe com uma sósia, uma versão maliciosa e luxuriante sua, o cisne negro. Espelhos adornam todos os ambientes do longa, refletindo todas as nuances de Nina, mesmo aquelas que ela ignora ter.

Não é à toa que o psicológico de Nina é tão complexo. Não só ela fora criada por sua mãe, uma bailarina frustrada, para ser uma dançarina tecnicamente perfeita, mas também é vista por esta como sua doce menina, uma filha sem falhas ou defeitos, um cisne branco encarnado. Toda essa sustentação rui por conta das exigências de Thomas para que ela encarne também o Cisne Negro, apelando para a exploração do seu lado obscuro.

Adotando, em alguns momentos, planos mais longos, Aronofsky não se contenta em explorar apenas o psicológico de Nina, mas também explora ao máximo o universo de uma companhia de balé, compreendendo que a rotina de trabalho exaustiva, as privações, as rivalidades internas e o companheirismo ali presentes são essenciais para compreendermos as motivações de Nina.

Isso não significa que o diretor tenha abandonado o seu pendor para o surreal. Ao lado do diretor de fotografia Matthew Libatique, Aronofsky nos mostra como a mente de Nina começa a ser afetada pelas pressões externas, com sua visão do mundo sendo, aos poucos, distorcida por seus medos e inseguranças. Poucas vezes presenciei no cinema momentos tão assustadores quanto às alucinações que Nina passa durante o filme. Atenção especial para a cena na boate, tremendamente bem montada e um mergulho profundo nas angústias e anseios de Nina.

Natalie Portman, em uma interpretação magistral, nos mostra a protagonista como uma figura com um tom de voz baixo, respeito (e certo temor) às figuras de autoridade e presa a uma rotina bastante exigente. Sua busca pela perfeição a deixou congelada em uma vida sem cores, repetitiva.

A chegada da impulsiva Lilly mostra exatamente esse contraste e a vontade oculta de Nina em abraçar seu lado mais selvagem. Daí o desconforto imediato e a atração retraída que Nina sente na presença da nova companheira. Interessante notar que Lilly, Beth e a mãe de Nina servem como espelhos para esta em vários momentos da história.

O restante do elenco se apresenta de forma homogeneamente positiva. Barbara Hershey merece um maior destaque como a mãe de Nina, uma mulher que não consegue evitar projetar seus sonhos e desejos na filha, mesmo amando-a com todas as suas forças. Mila Kunis mostra sua evolução como atriz, surpreendendo aqueles que a tinham marcado como a Jackie da sitcom “That’s 70s Show”.

Vincent Cassel consegue evitar que seu Thomas se transforme em uma figura antipática, mostrando-o como um homem apaixonado pela própria arte (o que explica seu envolvimento com suas atrizes principais). Finalmente, Winona Ryder surge em uma aparição curta, mas deveras marcante.

A perfeição é algo tão impossível de ser alcançado quanto a vida eterna, com a sua busca podendo levar a resultados triunfantes ou fins trágicos. Lidando novamente com um protagonista em uma obsessão impossível e enfrentando pressões insuportáveis, Aronofsky continua o seu estudo cinematográfico da natureza humana e entrega mais uma obra-prima. Recomendado.

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Thiago Siqueira é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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