Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 26 de junho de 2010

Flor do Deserto

Trajetória pessoal serve como argumento para retratar o drama das mulheres somalis, vítimas da circuncisão precoce.

“Flor do deserto”, relato cru e impactante da vida da ex-modelo somali Waris Dirie, é um filme que, mesmo abrindo mão de uma qualidade técnica superior, consegue emocionar o público como poucas produções vistas atualmente. A história da garota filha de pais nômades, circuncidada aos 3 anos, que fugiu de casa aos 13, após ser vendida para casamento com um comerciante sexagenário, é forte o suficiente para tornar meramente acessória qualquer outra exigência prática.

Aqui, a linearidade narrativa (cujo roteiro foi inspirado na autobiografia homônima de Waris) e o trabalho arrasador da atriz Liya Kebede, são pontos-chave e principais argumentos para uma sugestão: assista-o. Se optar por fazê-lo, prepare-se para duas horas de representação chocante de uma realidade que não parece tão ferina até ser vista ao vivo ou, ao menos, em uma  tela de cinema.

A autobiografia de Waris (equivalente em somali para ‘flor do deserto’) tornou-se, ainda em seu ano de lançamento, 1998, best-seller mundial. Desde então, com sua luta massiva e ininterrupta pela proibição da circuncisão no mundo, a ex-nômade foi nomeada Embaixadora Itinerante da ONU contra a Mutilação Feminina, figura central de um documentário da BBC sobre o tema e, agora, personagem principal de um longa-metragem.

Não é difícil entender porque a história de Waris desperta tanto fascínio em quem tem a oportunidade de ler seus livros ou assistir ao filme baseado em sua história. Tais materiais traçam um relato exato da conturbada fuga de uma garota que, de tão magra, nem parecia ter forças para se sustentar, e mesmo assim se lançou na travessia de um deserto da região até a capital Mogadíscio, de onde segue de avião até Londres.

O mote dos livros, do filme e do engajado discurso de Waris não é, porém, sua trajetória pessoal. Todos os aparentes produtos da história de vida da somali são apenas o pano de fundo de um esforço – dela, em seus livros e depoimentos, e da direção, no filme – para que a realidade de garotas circuncidadas, em um país cuja independência política só foi conseguida no início dos anos 60, e que ainda carrega índices de desenvolvimento social entre os mais baixos do mundo (expectativa de vida: 48,2 anos; mortalidade infantil: 116,3/mil nascimentos), seja conhecida.

Como a própria personagem faz questão de destacar em um dos melhores diálogos do longa, a exploração da imagem de uma ex-nômade transformada em famosa modelo cansou. O que importa, para ela, é a divulgação de um traço cultural que continua causando irreversíveis danos físicos e psicológicos às mulheres somalis.

Escolhida para dar vida à Waris, a atriz e também modelo Liya Kebede consegue conferir um realismo impressionante à personagem. Sua origem etíope e sua ascensão ao posto de uma das modelos mais bem pagas do mundo, tendo estrelado campanhas da Yves Saint-Laurent, Victoria’s Secret, Dolce & Gabanna, Louis Vuitton, Carolina Herrera, entre outras, podem ter garantido uma identificação quase instantânea entre atriz e personagem. O resultado é assustador. Além disso, e ainda deixando de lado a semelhança física entre as duas mulheres, a atuação de Kebede impressiona justamente por ser dotada daquilo que poucas atrizes conseguem dispor com verdadeira eficácia: uma notável carga dramática em uma atuação sem grandes rasgos e picos emocionais.

Não parece justo citar os defeitos técnicos de um filme cujo apelo social grita mais alto que qualquer outro fator, mas deixá-los de lado seria igualmente irresponsável. Se “Flor do Deserto” acertou no principal, alguns desvios e derrapadas também estão presentes. Determinados recursos de edição são exagerados, assim como algumas sequências do roteiro, o que se torna desnecessário devido ao apurado senso dramático da narrativa. Ao mesmo tempo, a originalidade de alguns ângulos, de alguns planos do deserto africano e de enquadramentos curiosos, também são marcas do filme. Preste atenção na sequência de imagens que precede a aparição dos créditos finais.

Sob todos os aspectos, positivos e negativos, o saldo final de “Flor do Deserto” é  interessante. Não é um filme indicado para quem prefere analisar o conjunto da técnica. Também não é um filme sobre uma ex-nômade que conseguiu vencer na vida e tornou-se uma modelo bem sucedida. Aqui, antes de tudo, os costumes de um povo são colocados em confronto direto com os danos que podem causar. E se a circuncisão  pode ser considerada como mais um traço da crueldade humana, Waris Dirie é a prova de que perder as esperanças na humanidade não é a melhor saída.

Deixando de lado as falhas técnicas e desde que se leve em conta somente o alcance de seu aparente objetivo principal, “Flor do Deserto” merece 10 estrelas.

Jader Santana
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