Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O Homem Que Engarrafava Nuvens

Ao mesmo tempo em que o longa apresenta sua audiência à real relevância da cultura nordestina, em especial do baião, promove a emocionante aproximação de uma filha à memória de seu falecido pai. Um filme simplesmente obrigatório.

Grande parte dos brasileiros, especialmente dos nordestinos, sofrem uma aversão tremenda à sua própria cultura, em um exemplo da mentalidade colonialista de nossa nação. Por isso, a feitura de uma obra tão bela quanto este “O Homem Que Engarrafava Nuvens” merece ser louvada, não apenas pela qualidade excepcional do longa, mas também pela coragem em fazer um importantíssimo resgate cultural.

Escrita e dirigida por Lírio Ferreira, a fita tem o seu foco na vida e obra de Humberto Teixeira, contando a trajetória do homem desde suas origens no interior do Ceará, em meados da década de 1910, sua ida para o sudeste brasileiro e a sua consagração. Advogado, compositor, político e escritor, Teixeira ficou conhecido como o “Doutor do Baião”, com sua parceria com Luiz Gonzaga levando os dois ao estrelato e este gênero musical tão nordestino ao topo das paradas de sucesso nos anos 1940.

Explorando um vasto território, a produção mostra diversas facetas de Teixeira, contando de seus amores, valores e, principalmente, de sua obra magnífica, que inclui a conhecidíssima canção “Asa Branca”, música que retrata perfeitamente o espírito do retirante nordestino. As dificuldades enfrentadas pelo povo do interior do Nordeste e a identidade cultural dos habitantes daquela região são temas fortíssimos, muito bem abordados pela película.

Sem jamais perder de vista a figura do biografado, acompanhamos a filha de Teixeira, Denise Dummont (que também é produtora do filme), tentando conhecer mais da figura que fora seu progenitor e da relação deste com o mundo, não só por meio de suas obras e feitos, mas também de sua própria vida pessoal. Em dado ponto do longa, Dummont afirma que, apesar de ter sido criada por seu pai, só foi conhecê-lo realmente a partir das pesquisas para este documentário.

Então além de embarcar nessa jornada para conhecer mais sobre a cultura nordestina, o público acompanha paralelamente a busca de uma filha tentando conhecer o seu pai. Esse paralelo é ainda mais importante para narrativa ao se levar em conta os depoimentos de diversos artistas, não apenas músicos, falando como o trabalho de Humberto Teixeira impactou suas carreiras, não importando se são astros da MPB ou cegos repentistas do nordeste brasileiro.

Como não poderia deixar de ser, a fita é recheada de momentos musicais, mostrando a influência do compositor nos mais diversos ritmos. O público verá performaces de figuras como Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, David Byrne, Zeca Pagodinho, Cordel do Fogo Encantado, dentre muitas outras participações. Um ponto deve ser ressaltado quanto a inserção de tais artistas no filme. O longa, de maneira acertada, confere o mesmo peso aos chamados nomes consagrados e aos solenes desconhecidos, mostrando que a arte não é sinônimo de reconhecimento.

O trabalho de pesquisa realizado também é digno de aplausos, vide o resgate de antigas filmagens e entrevistas de Humberto Teixeira, bem como trechos de diversos filmes da era Atlântica do cinema brasileiro, tremendamente influenciada pelo sucesso do baião. O longa ainda apresenta alguns relances de como esse ritmo tão nordestino ganhou o mundo, incluindo versões em inglês e japonês de “Asa Branca”.

Além disso, há uma inserção em um contexto histórico de cada um dos fatos biográficos e culturais apresentados na fita, não deixando os elementos apresentados durante a metragem do longa “soltos” em relação à História. Sem contar que os depoimentos levantados durante a projeção mostram não apenas a dimensão artística do biografado, mas também como ele era como um ser humano, vide o diálogo entre Denise e sua mãe, extremamente sincero e emotivo.

Tecnicamente, o documentário também não desaponta. Contando com uma direção de fotografia belíssima, que faz um eficaz uso de contraste entre luz e sombras, é difícil não se deixar levar pela beleza plástica das imagens captadas na fita, graças ao trabalho do cinematógrafo Walter Carvalho, que já havia realizado trabalhos fantásticos em longas de ficção, como “Baixio das Bestas” e “A Máquina”.

A montagem do filme, realizada por Daniel Garcia e Mair Tavares, é espetacular, com o documentário jamais perdendo ritmo e deixando o espectador cada vez mais fascinado e curioso sobre a vida e obra de Teixeira. Considerando os diversos ângulos explorados pela  produção e um objeto de estudo tão amplo e complexo, seria fácil deixar a audiência perdida em um mundo de informações desconexas, algo que, felizmente, está longe de acontecer.

A fita não é daqueles documentários musicais que dependem exclusivamente das intervenções artísticas para empolgar, despertando uma curiosidade real quanto a quem foi aquela figura mostrada na tela e seu impacto no mundo. O que transforma este filme uma obra única, tanto do ponto de vista técnico quanto narrativo, é a habilidade de Lírio Ferreira e seus colaboradores em mostrar o quanto um rapaz do interior do Ceará impactou o mundo simplesmente ao compartilhar com esta a sua realidade.

“O Homem Que Engarrafava Nuvens” se torna, ao lado de “Loki – Arnaldo Baptista”, um dos mais importantes relatos sobre a música brasileira realizado nos últimos anos. No entanto, a película possui um importante diferencial ao trazer para o grande público uma cultura estritamente brasileira, mas que tem sido ignorada pelo seu país. Mais do que recomendado, este filme é simplesmente obrigatório.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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