Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 04 de agosto de 2009

À Deriva

Dando um enfoque inovador para um tipo de trama já conhecida pelo público, "À Deriva" revela um grande talento para o público ao mesmo tempo em que demonstra a versatilidade do cineasta Heitor Dhalia, responsável por "O Cheiro do Ralo".

Histórias sobre as descobertas da adolescência e dramas familiares não são novidades para o público. No entanto, mostrar um período tão conturbado de uma pessoa de um modo sincero e sem grandes sensacionalismos é algo raro em qualquer mídia. Escrito e dirigido por Heitor Dhalia, "À Deriva" é um destes casos.

No longa, conhecemos Filipa, uma adolescente no final dos anos 1970 de férias em uma praia paradisíaca com sua família que começando a descobrir sua sexualidade. Ao mesmo tempo, os pais dela, o escritor estrangeiro Mathias (Vincent Cassel) e a brasileira Clarice (Débora Bloch), vivem uma grave crise conjugal, com uma separação parecendo ser inevitável. Além disso, tudo, a jovem descobre que seu pai tem uma amante, Angela (Camilla Belle).

A partir desses eventos, Filipa se vê presa em um turbilhão de emoções, afetando seus relacionamentos com todos ao seu redor. É mostrando essa confusão emocional da protagonista que o filme ganha sua maior força, muito por conta do belíssimo trabalho de Laura Neiva, jovem atriz que tinha apenas 14 anos quando das filmagens do projeto. Ela foi descoberta através do site de relacionamentos Orkut, quando a equipe do filme já havia analisado e rejeitado centenas de outras pretendentes para o papel.

Foi a mistura de beleza, carisma e talento da jovem que lhe permitiu atuar de igual para igual com nomes consagrados do cinema e da TV, vivendo uma personagem que passa por mudanças tão complicadas. Reparem o sorriso quase imperceptível de Filipa ao colocar um garoto que a magoou em uma situação embaraçadora, a inocência de seu primeiro beijo e seus tensos diálogos com seu pai ao confrontá-lo sobre Angela. Filipa tem ações e reações de uma mulher feita, mas ainda vê o mundo com olhos infantis, paradoxo que Neiva expressa de maneira impressionante.

Vincent Cassel desenvolve o seu Mathias de maneira bastante inteligente. Apesar de ele estar longe de ser o marido ideal, simpatizamos com o personagem justamente pelo carinho e amor que ele tem para com os seus filhos, sendo capaz de tudo pela felicidade destes, sentimentos demonstrados não só por grandes gestos de afeto, mas também por simples olhares, mostrando a complexidade do trabalho realizado pelo ator francês, que possui uma ótima química com Laura Neiva.

Clarice se torna uma figura bastante instável com o passar da projeção, concedendo a Débora Bloch bastante material para retratar essa mulher de um modo extremamente humano, mostrando-a dividida entre sua felicidade e a sua família. Bloch se mostra a altura do desafio e prova que, apesar dos diversos papéis cômicos que marcaram sua carreira, é uma atriz bastante versátil e capaz de interpretar papéis dramáticos com enorme desenvoltura.

Já Cauã Reymond e Camilla Belle são pouco exigidos pelo filme, com seus personagens servindo mais de objetos de desejo do que como figuras reais. Isto não é uma falha da produção ou mesmo de seus atores, mas uma escolha acertada da trama. Afinal, a história não é sobre eles, mas sobre o mundo de Filipa.

O diretor e roteirista Heitor Dhalia, por sua vez, também trabalha aqui bem distante dos lugares onde fez seu nome. Ao contrário de "Nina" e "O Cheiro do Ralo", filmes quase anárquicos que se passavam em ambientes claustrofobicamente urbanos, o cineasta desenvolve uma trama marcada por planos abertos, explorando a imensidão arrebatadora da praia onde se passa a história. A película ainda conta com uma ótima direção de arte, que jamais quebra a ilusão do período no qual a trama se passa.

Exercitando sua criatividade visual durante a película, podemos acompanhar Dhalia retratando imagens simplesmente belíssimas, inclusive em ótimas sequências embaixo d'água, que, embora sejam curtas, são tremendamente significativas. A fotografia utilizada na produção retrata através de tons mais dourados os períodos mais "alegres" da trama, sendo substituída aos poucos por momentos cada vez mais sombrios, em um inspirado trabalho do cinematógrafo Ricardo Della Rosa.

No entanto, a claustrofobia que marca a obra de Dhalia ainda se mostra bastante presente, desta vez na própria alma de sua protagonista. A adolescência é uma fase na qual o mundo parece pequeno e estranho demais. No caso de Filipa, tal sensação é ampliada por uma crise sobre a qual ela não tem o menor controle, obrigando-a a crescer mais depressa em seu mundinho.

Logo no primeiro plano do filme, vemos Filipa brincando junto ao pai, flutuando em uma bóia no oceano. Tal cena, como descobrimos no decorrer do filme, representa a existência inocente da garota naquele momento. Quando do final do filme, vemos que Filipa ainda está a flutuar no mundo, mas que essa inocência se foi e que ela agora é uma mulher, pronta para encarar a vida de frente. Tal transição nunca é fácil e pode ser bastante sofrida, mas é necessária. O que torna "À Deriva" tão sincero é o seu retrato singelo da dor que vem desta mudança. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre