Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 20 de julho de 2009

Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2009): o tabuleiro foi armado

"Harry Potter e o Enigma do Príncipe" pode ser descrito como o respirar profundo antes do mergulho. Em seu penúltimo ano em Hogwarts, Harry e seus amigos possuem mais com o que se preocupar do que simplesmente tirarem boas notas em suas aulas. Intrigas, traições, conspirações, ameaças e romances rondam a escola de magia, enquanto a guerra contra Voldemort se avizinha.

Logo de cara, o longa já deixa claro que o roteiro do veterano na série Steve Kloves irá tomar diversas liberdades quanto à versão literária da história, escrita por J.K. Rowling, neste longa que mostra uma evolução visível do diretor David Yates dentro da franquia. Estabelecendo o clima de tensão existente no mundo dos bruxos, vemos uma breve recapitulação do incidente no ministério ocorrido em “Harry Potter e a Ordem da Fênix” seguido de um estrondoso ataque dos seguidores do Lorde das Trevas à Londres, afetando seriamente o mundo dos trouxas.

Se tornando cada vez mais pró-ativo, o diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore, começa a preparar Harry para a guerra, fornecendo-lhe informações sobre a origem de Voldemort e o encarregando de uma missão especial, que envolve conseguir uma certa informação do novo professor de Poções da escola, o vaidoso e simpático bonachão Horácio Slughorn (Jim Broadbent).

Enquanto isso, Harry, Rony e Hermione enfrentam diversos problemas amorosos, com o protagonista acabando por se apaixonar por Gina, irmã de seu melhor amigo. Já na Casa Sonserina, no entanto, Draco Malfoy parece ter uma sombra em seu futuro, sendo auxiliado pelo Prof. Snape em uma misteriosa tarefa para Voldemort.

O filme deixa um pouco de lado o tal “enigma do príncipe” do título nacional, se concentrando mais nos preparativos para o grand finale da saga, que ocorrerá nos próximos dois filmes. Embora o livro de poções e feitiços encontrado por Harry tenha sua relevância, esta empalidece perante as maquinações que ocorrem dos dois lados do conflito, bem como aos detalhes da origem de Tom Riddle – vulgo Voldemort – revelados por Dumbledore.

O vilão, aliás, é visto apenas em um flash – pouco para valer a citação de Ralph Fiennes nos créditos. Porém, sua força está presente durante toda a projeção, de modo similar ao da figura do Imperador Palpatine nos episódios IV e V da saga “Star Wars”. Vislumbrar a malícia presente no jovem Riddle sabendo no que ele se tornará é uma das melhores coisas do filme, especialmente pelo impacto de tais informações no “presente”, principalmente para Dumbledore e Slughorn.

Tensos ataques seguidos dos Comensais da Morte até mesmo a pontos anteriormente “seguros” do mundo bruxo, como ao outrora movimentado Beco Diagonal e a uma certa residência de bruxos, contribuem para tornar a atmosfera ainda mais densa. Nesse ponto, as intervenções mais alegres, como a loja dos gêmeos Weasley ou as partidas de quadribol acabam ajudando a equilibrar um pouco o clima pesado que envolve a trama neste ponto.

Neste mesmo sentido, a preocupação do longa em mostrar como as relações amorosas entre os personagens acabam por aflorar se torna bastante lógica, já que nenhuma daquelas pessoas está segura em relação aos seus futuros, dado o nível de ameaça. Assim, o emaranhado amoroso envolvendo Rony e Hermione, bem como a crescente atração entre Harry e Gina ganham destaque na película, culminando em momentos divertidos e bastante românticos. Aliás, não é só dentro de Hogwarts que o romance está em alta, como mostra o casal formado por Remo Lupin (David Thewlis) e Tonks (Natalia Tena), apresentado de forma sutil pelo longa em um tremendo acerto do roteiro.

O elenco se mostra afinado e mais equilibrado do que nunca. Daniel Radcliffe possui ótimas cenas ao lado de Michael Gambon, se revelando um ator que realmente possui um potencial dramático bastante promissor. Tendo de trabalhar com um verdadeiro turbilhão de emoções pelo qual Harry passa, o jovem se mostra a altura do desafio, sabendo explorar os momentos nos quais atua ao lado de atores consagrados e mostrando carisma em suas cenas mais solitárias – embora tenha escorregado um pouco durante o clímax do filme, no qual o seu tom ficou um pouco aquém do ideal. Vemos Harry conseguindo rir um pouco, mesmo com as tragédias pelas quais passa, momentos nos quais seu intérprete consegue se soltar um pouco.

A química de Radcliffe com seus colegas da ala jovem do cast continua irretocável, com Rupert Grint e Emma Watson ganhando destaques merecidos. Grint conseguiu abandonar seus tiques careteiros, algo que era deveras incômodo, e demonstra segurança para amadurecer Ron Weasley sem torná-lo chato e sem nos privar das boas risadas vindas das trapalhadas do bruxo ruivo. A bela Emma Watson vê Hermione finalmente se soltando emocionalmente cada vez mais, continuando sendo a voz da razão do trio, mas se deixando levar pela emoção por mais vezes. É uma pena que, desta vez, a personagem não participe mais ativamente da ação.

Bonnie Wright é quem mudou bastante. De uma mera ponta em “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, sua Gina evoluiu para um belo e desenvolvido (em todos os sentidos) interesse amoroso para Harry, com a atriz mostrando bastante desenvoltura nessa fase de sua personagem. É uma pena que vejamos tão pouco dos demais integrantes da “Armada Dumbledore”.

Outro que cresceu bastante profissionalmente foi Tom Felton, com seu Draco Malfoy saltando de um mero bully oligárquico para um personagem muito mais profundo, cujo sangue consegue prendê-lo a um destino de maneira tão forte quanto Harry. Em apenas algumas cenas, Felton transmite todo o sofrimento e os sentimentos contraditórios que passam pela cabeça de Malfoy, transformando o outrora platinado mimado em uma figura digna de pena.

Luna Lovegood, vivida por Evanna Lynch, tem seus momentos, mas a simpática aluada tem muito pouco tempo de cena, para tristeza de seus fãs. Já Neville Longbottom, interpretado por Matthew Lewis, após ter ganhado um pouco mais de destaque no exemplar passado da saga, volta a ser apenas mais um coadjuvante de luxo, embora deva crescer um pouco nos próximos capítulos.

Os novatos na saga Hero Fiennes-Tiffin (sobrinho de Ralph Fiennes) e Frank Dillane realizam um feito tremendo ao viverem Tom Riddle em sua infância e adolescência, respectivamente, mostrando já o potencial que este possuía para o mal, mas sem apelarem para clichês de “jovens malignos”. Notamos muita agressão e malícia em seus olhares e diálogos, mas nada que penda para o exagero.

Na ala mais experiente do elenco é difícil apontar um destaque, pois tais monstros sagrados (sem trocadilho) da atuação britânica aparecem dando verdadeiras aulas de interpretação. Michael Gambon revela facetas de Dumbledore que tornam o Diretor de Hogwarts mais adorável e complexo. Sua preocupação para com Harry – até em um nível extremamente pessoal – e seus arrependimentos em relação a Tom Riddle, bem como o sofrimento pelo qual passa no decorrer do filme geram cenas maravilhosas, nas quais Gambon deixa o espectador maravilhado com sua performance.

Jim Broadbent arranca risadas e tristeza do público como o carismático e trágico Horácio Slughorn, cuja alegria e afobação escondem um grave segredo. Broadbent conquista o espectador, seja nas cenas mais descontraídas ou em uma especialmente complicada e emocional, na qual divide a tela com Daniel Radcliffe. Maggie Smith aparece pouco, mas aparece bem como a Professora Minerva McGonagall, principalmente mais para o final do derradeiro ato da fita.

Alan Rickman, por seu trabalho vivendo Severo Snape, ganha altas condecorações, graças ao desempenho exemplar do ator, que concede ao sombrio professor uma aura toda especial, algo que será extremamente relevante daqui para frente. Atente para as inflexões e às pausas vocais do ator e note como a construção do personagem se mostra mais complicada do que pode parecer à primeira vista e deveras fascinante de assistir por conta disso.

Robbie Coltrane, como Hagrid, tem menos tempo de cena que nos exemplares anteriores da franquia, embora continue tremendamente carismático como o grandalhão guarda-caça e a ótima Helena Bonham Carter mostra toda a insanidade de Belatriz Lestrange com um trabalho vocal e de expressão corporal de se tirar o chapéu. Completamente maníaca, a vilã interpretada por Bonham Carter chama a atenção em todas as cenas em que aparece.

Tecnicamente, nota-se uma grande evolução de David Yates na direção do longa, comparando com seu trabalho em “Harry Potter e a Ordem da Fênix”. Desde seu cuidado na apresentação visual dos personagens, passando pela movimentação mais incisiva da câmera – que se torna uma importante ferramenta para inserir o espectador dentro do filme – até mesmo para o apuro visual em determinadas cenas, tudo conspira para tornar este o exemplar visualmente mais atraente da franquia.

A fita teve a sorte de contar com o cinematógrafo francês Bruno Delbonnel na direção de fotografia. Responsável pela bela cinematografia de “O Fabuloso destino de Amelie Poulin”, Delbonnel trabalha com uma paleta de cores mais sombrias, sóbrias e dessaturizadas, que reflete o clima cada vez mais tenso da trama, aliviando um pouco nas cenas mais descontraídas, mas com a tensão sempre presente no visual da fita.

Outro fator técnico que reflete na trama é a direção de produção e arte, que sugere com objetos de cena a continuidade da saga (vide os diversos itens de filmes anteriores que marcam presença), bem como pistas para os mistérios que se apresentam neste filme. Já a trilha sonora completa sua transição dos temas mais alegres dos primeiros filmes para tons mais épicos e sérios, com trechos das músicas dos longas iniciais sendo inseridos apenas de maneira sutil e pontual.

O desfecho em aberto do filme deixa claro que “Harry Potter e o Enigma do Príncipe” deve ser encarado como o primeiro movimento da parte final da saga do jovem bruxo. Sendo assim, devo dizer que Yates e sua equipe armaram muito bem o tabuleiro para a conclusão da história. Resta aos fãs esperarem que eles consigam fazer com que o jogo esteja a altura.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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