Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 08 de julho de 2009

Deixa Ela Entrar

“Deixa Ela Entrar” é uma produção sueca de 2007 que trata do relacionamento entre uma criatura da noite e um jovem ser humano, lidando com este batido tema com extremo respeito aos mitos vampirescos e ao espectador.

Deixe Ela EntrarNão é segredo para ninguém que eu odeio “Crepúsculo”. Sou fã de histórias de vampiros, por isso senti que alguém tinha enfiado uma estaca no meu peito a cada subversão do mito dos sugadores de sangue que aparecia naquele abacaxi cinematográfico. Pela semelhança de tema entre os dois filmes, já comecei a assistir a este “Deixa Ela Entrar” com os dois pés atrás.

Ao contrário da rotina adotada pela já citada bomba e pela ótima série “True Blood”, aqui temos um menino de 12 anos se apaixonando por uma vampira que também tem a mesma idade, mas há bem mais tempo do que ele imagina. A fita é baseada no livro homônimo de John Ajvide Lindqvist (publicado originalmente em 2004, aliás), com o próprio escritor assinando o roteiro da produção.

A história é centrada em Oskar (Kåre Hedebrant), um solitário e tímido garoto que é atormentado por seus colegas de classe. Certa noite, ele vê um homem e uma garota se mudando para o apartamento ao lado. A menina, de nome Eli (Lina Leandersson), é tão reclusa quanto ele e, em meio a curtos diálogos travados no frio playground do condomínio, nasce uma amizade entre os dois, uma relação que mudará seus destinos para sempre. Enquanto isso, estranhas mortes passam a ocorrer na localidade onde eles vivem, colocando um morador local no encalço dos responsáveis.

Desde seu início, “Deixa Ela Entrar” já mostra que, apesar de ter elementos mais açucarados em seu roteiro, estes nunca irão sobrepujar o plot geral, mais voltado para o suspense. Cenas de violência não são raras, sempre com sangue abundante e uma violência em nível considerável. Os ataques que ocorrem são brutais e não esperem o típico “politicamente correto” dos longas hollywoodianos.

Interessante notar que, logo após sugar o sangue ser consumido, o protocolo vampiresco da trama dita que o pescoço da vítima deve ser quebrado para evitar o surgimento de mais um ser imortal. Não se trata o vampirismo com glamour, mas como uma doença. No filme, se mostra que a existência como um desses seres imortais é extremamente dolorida e solitária, uma verdadeira maldição.

Não esperem vampiros brilhando feito purpurina sob a luz do sol, com as fraquezas dessas criaturas lendárias sendo tratadas de um modo extremamente respeitoso. A ambientação da história em uma cidade sueca branca e gélida é bem aproveitada pela belíssima direção de fotografia, dando um toque desolador à fita, que chega a lembrar o ótimo visual de “30 Dias de Noite” por algumas vezes. Em ambientes externos, há uma sensação de insignificância em relação ao todo. Já entre quatro paredes, a claustrofobia impera.

O diretor Tomas Alfredson possui um olho afiado para tomadas esteticamente belas. Cenas como a queda de um corpo, o ataque sob a ponte ou o efeito de uma “entrada forçada” são plasticamente lindas e extremamente relevantes do ponto de vista narrativo, sendo para mostrar algum contraste entre os personagens ou expressar o sentimento destes de uma maneira mais visual.

Se adequando às suas restrições orçamentárias, vemos uma predileção por parte dele por efeitos práticos e pelo trabalho de maquiagem, ambos bastante efetivos e funcionando lindamente em conjunto com a cinematografia. Também trabalhando como montador do filme, Alfredson equilibra as cenas de desenvolvimento de personagens com as mais “gore”, alcançando um ritmo perfeito para a película.

Mas o que torna “Deixa Ela Entrar” único é a dinâmica entre seus protagonistas. O oprimido Oskar sonha com vingança contra aqueles que tornam seu dia-a-dia um inferno, mas sua moral impede o contra-ataque. Eli está acostumada a fazer o que for necessário para sobreviver. A ternura dele e o instinto agressivo dela acabam interagindo, fazendo-os assimilar novos comportamentos, exatamente como acontece com adolescentes comuns, cujas interações com outros jovens os moldam.

A despeito de estarem inseridos em um universo “fantástico”, os personagens agem como se fossem reais, não meras caricaturas de jovens como o público está acostumado a ver. Enquanto Oskar tem seu problema com “bullies”, Eli tem de enfrentar sua fome e ambos tem de lidar com esse sentimento chamado amor que floresce nos dois, que começam a perceber que se complementam.

Não fossem as fortes interpretações de Kåre Hedebrant e Lina Leandersson, muito disso se perderia. Hedebrant lida habilmente com o isolamento e a humilhação passados diariamente por Oskar, expressando o contínuo desespero do garoto desde o primeiro momento em que o vemos. Já Leandersson possui uma tarefa extremamente complicada, pois tem de transmitir ao público algo extremamente irreal, que é o desespero causado por sua incontrolável sede de sangue, algo salientado por uma belíssima cena entre os dois protagonistas.

Os jovens atores possuem uma química incrível, que torna até possível relevar o único grande problema do roteiro, que é a batida cena na qual Eli diz que não pode ser amiga de Oskar. Tal diálogo, que também existe em “Crepúsculo”, é um problema já que o filme se desenvolve justamente com a amizade dos dois que sabemos que vai acontecer. Mas, em meio a tantos acertos, este escorrego acaba sendo um mero detalhe.

Trabalhando a alegoria da adolescência com bem mais sensibilidade e preparo do que a franquia criada por Stephenie Meyer, “Deixa Ela Entrar” dá o seu recado sem esquecer de respeitar os dogmas dos bons filmes de vampiro. Esta pequena grande história merece ser conhecida pelo público antes de se tornar mera “inspiração” para uma obra de terceira (como se já não o fosse).

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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