Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 19 de junho de 2009

Che

"Che - O Argentino", de Steven Soderbergh, é um ótimo filme sobre o mítico revolucionário Ernesto Guevara, mas é imperfeito ao tentar retratar o complexo homem que Che foi.

"Che – O Argentino", primeira parte do esforço empreendido por Steven Soderbergh para levar às telas a vida de Ernesto "Che" Guevara é um ótimo filme, mesmo não sendo o melhor longa sobre a vida desta controversa figura que fora o protagonista-título, título que ainda pertence a "Diários de Motocicleta", que enfocou os anos de juventude do argentino.

Abordando o início do período revolucionário de Guevara, pode-se dizer que tal produção é um "filme de fã", algo parecido com o que Martin Scorsese fez com os Rolling Stones em "Shine a Light". Explicando melhor a situação: assim como Scorsese havia enfocado o que os Stones tinham de melhor em seu longa (no caso posto, a música) e se mantendo longe de temas mais controversos, Soderbergh toma a opção de não desmistificar a figura quase messiânica que Ernesto Guevara encarnou durante a tomada de Cuba durante a segunda metade da década de 1950.

Propositadamente ou não, tal atitude, de certo modo, lembra um pouco uma postura que Fidel Castro adotou durante a própria revolução, algo inclusive focado no filme. Assim, ao contrário do já citado "Diários", vemos muito pouco de Ernesto no filme, mas muito de Che, enfocando-o como um ser de absoluta justiça e moralidade, praticamente sem espaços para dúvidas ou auto-questionamentos.

O filme mostra Guevara em dois momentos distintos de sua vida, embora igualmente marcantes, alternando entre os bastidores de sua visita a Nova York em 1964 para discursar na ONU e o início e desenvolvimento do movimento revolucionário para "libertar" Cuba do ditador Fulgencio Batista, praticamente um fantoche dos EUA.

Passando por entrevistas, discursos e momentos mais descontraídos de Guevara em Nova York, mostrados por uma fotografia em preto-e-branco, conhecemos como os momentos de conflito e sangue refletiram naquele homem. Tais cenas, filmadas por Soderbergh usando uma câmera de mão, registradas de maneira quase documental e em cores vivas, passam para o público algo bastante próximo da noção de "revolução romântica" que só consegue ser quebrada pela atuação de Benicio Del Toro como Che.

Se acreditamos na força do pungente discurso de Guevara na ONU é porque enxergamos a dedicação e o sofrimento físico deste durante o período de luta armada, algo que o ator realmente transmite em sua performance. Se o roteiro pouco explora as nuances de Ernesto como homem e as dificuldades em tomar decisões moralmente complexas rapidamente naquele ambiente de conflito, Del Toro faz o máximo possível para colocar este relevante aspecto humano em sua atuação, seja em inflexões, pausas ou até mesmo em sua linguagem corporal.

Em dado momento, Fidel Castro ressalta que Che é muito importante para a Revolução para ficar nas linhas de frente o tempo todo, arriscando sua vida. Castro entende que o poder de Che junto ao povo e seus comandados, com sua figura carismática e de moral inabalável, é vital para dar ao seu movimento uma maior validade em meio aos diversos grupos rebeldes que tentavam derrubar a ditadura. O tom de voz e as inflexões de Fidel, aliás, estão na medida e é impressionante como o ator mexicano Demián Bichir encarnou tão bem seu personagem, que possui certa força toda vez que aparece.

O mais interessante é ver figuras políticas vivas até hoje, como os irmãos Castro, ganhando versões cinematográficas que parecem verídicas e humanas. Neste sentido, Soderbergh fez um ótimo trabalho junto ao elenco coadjuvante que encarna os revolucionários, incluindo Rodrigo Santoro como Raul Castro. No entanto, é triste ver que os "antagonistas" são retratados de maneira tão unidimensional e vilanesca, sem um pingo de profundidade. Não duvido que covardia e maldade fossem comuns naquela ditadura militar, mas o que vemos no filme é um conflito altamente maniqueísta, algo que inexiste em batalhas por poder político.

Há uma cena, logo no começo do filme, na qual os Castro, Guevara e outras figuras-chave da Revolução discutem, ainda no México, como chegarão a Cuba e tirarão Batista do poder. Tal sequência, incrivelmente intimista, concede aos eventos que se seguirão uma aura de realismo que se encaixa muito bem em uma cinebiografia e vemos Ernesto um tanto quanto preocupado com os desafios que enfrentaria, contrastando com o absolutamente resoluto Che que veríamos posteriormente.

Soderbergh aplica muito bem o que aprendeu em suas experiências comandando blockbusters (trilogia dos "Homens") nas cenas de ação. Destaco a batalha que ocorre no ato final do filme, extremamente tensa, realista e tecnicamente perfeita A beleza visual do filme, ressaltada pela bela cinematografia realizada pelo próprio diretor, sua solidez narrativa e a ótima interpretação de Benicio Del Toro já valem o ingresso, bem como o gancho preparado pelo diretor para o derradeiro capítulo de sua empreitada já convence o espectador a voltar para acompanhar o desfecho da história.

No entanto, fica ainda o desejo que conhecer mais sobre o homem que fora Ernesto Guevara. O Che ideológico é bastante interessante, mas já ficou saturado pelo excesso de camisetas com seu rosto nas ruas e universidades. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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