"Star Trek" quebra totalmente o cânone dos episódios e séries anteriores da franquia, apresentando ao público versões levemente diferentes daqueles personagens consagrados nos mais de 40 anos da franquia e jogando-os em um novo universo, mais perigoso e sexy. Mas também traz consigo vários dos elementos que tornaram a saga um sucesso, revitalizando-a de maneira maravilhosa, sem esquecer de suas origens.
Por mais que os fãs de “Jornada nas Estrelas” (eu incluso) teimassem, era impossível negar que a franquia estava praticamente morta na telona. Após o fracasso retumbante que fora “Jornada nas Estrelas – Nemesis” e do cancelamento da série de TV “Jornada Nas Estrelas – Enterprise”, a saga espacial criada por Gene Roddenberry parecia fadada a desvanecer na fronteira final.
Mas eis que o cineasta J.J. Abrams, também egresso da TV com séries como “Lost” e “Alias” e com o bom longa “Missão: Impossível – III”, tomou para si a missão de ressuscitar uma saga, da qual ele mesmo não era fã. Contando com a colaboração dos escritores Alex Kurtzman e Roberto Orci (“Transformers”), ele revive o franchise e o atualiza para um novo público e um novo século, mas também trazendo elementos para cativar os fãs do Cânone Clássico.
Antes de tudo: mesmo trazendo os mesmos personagens e várias características da série original de 1966, este “Star Trek” definitivamente não se passa no mesmo universo que o seriado televisivo, rompendo totalmente a cronologia estabelecida pelos 10 filmes e cinco produções televisivas anteriores. A trama mostra um terrorista romulano chamado Nero (Eric Bana) voltando acidentalmente no tempo e alterando os eventos que marcaram o nascimento de James Kirk, o futuro capitão da nave USS Enterprise, causando um efeito borboleta que cria uma linha temporal alternativa.
Nero planeja vingança contra o Sr. Spock original (Leonard Nimoy) e a Federação dos Planetas Unidos, considerados por ele como os responsáveis pela destruição de seu mundo, Romulus. 25 anos após sua chegada no “passado”, o destino de vários mundos repousa nas mãos de jovens oficiais da Frota Estelar, dentre eles um rebelde James Kirk (Chris Pine) e um dividido Spock (Zachary Quinto). Rivais dentro da academia da Frota, os dois terão de pôr suas diferenças de lado para levar a recém-inaugurada USS Enterprise à batalha contra a praticamente invencível nave do inimigo.
“Star Trek” é bem sucedido em um aspecto que George Lucas e sua nova trilogia “Star Wars” fracassou: colocar humanidade em seus personagens. Após uma sequência inicial que consegue arrancar lágrimas de alguns espectadores, o filme vai cuidadosamente apresentando seus personagens, mostrando em paralelo o crescimento de Kirk e Spock, apresentando a rebeldia do primeiro e a divisão do segundo entre suas emoções humanas e a cultura baseada na lógica vinda de seu lado vulcano.
No caminho, vemos como a tripulação da Enterprise clássica vai se formando, mostrando a amizade entre Kirk e o pessimista médico Dr. Leonard McCoy (Karl Urban), a chegada acidental do piloto inexperiente, embora talentoso, Hikaru Sulu (John Cho), e do empolgado jovem alferes russo Pavel Chekov (Anton Yelchin), e até um triângulo amoroso entre Kirk, Spock e a bela e segura oficial de comunicações Uhura (Zoë Saldana), culminando com a hilária aparição do engenheiro-chefe da nave, o amalucado Scotty (Simon Pegg).
Todos os personagens têm uma razão de ser, com o roteiro do longa sem deixar nenhuma daquelas figuras jogadas, dando funções essenciais para cada uma delas. O melhor é que não há caricaturas no filme, com todos – até mesmo o vilão Nero – ganhando características tridimensionais, desenvolvendo-os como pessoas, não meros artifícios do texto. Cada ator traz o seu melhor para o longa, com nenhum membro do jovem elenco com a pretensão de ofuscar o outro, mostrado um entrosamento fantástico entre eles.
Obviamente, o grande destaque vai para Chris Pine e Zachary Quinto, que possuem uma química fantástica. Em uma estrutura bem clássica dos grandes rivais destinados a forjarem uma amizade lendária, a dupla surpreende em cenas que já vão entrar para a história da saga como o julgamento de Kirk pelo incidente Kobayashi Maru. O pouco conhecido Pine se mostra extremamente à vontade como o inteligente, embora arrogante, James Kirk. Vemos que, por conta da falta de seu pai, aquele garoto apresentado no começo da fita se torna alguém com sérios problemas de autoridade.
Não é à toa que ele só se alista na Frota Estelar graças a um desafio proposto pelo seguro e sábio capitão Christopher Pike (Bruce Greenwood). Tais características do personagem são apresentadas de maneira bastante natural pela atuação de Pine, que incorpora até mesmo “a voz Shatner”, o modo de interpretação peculiar que o Kirk original, William Shatner, possui, declamando suas falas com pausas que caminham na linha entre o canastrismo e o excesso de confiança.
Quinto, por sua vez, teve uma tarefa mais complicada. Vivendo uma figura icônica e contracenando com o ator que levou este personagem a ser tão cultuado, ele se sai maravilhosamente bem, colocando nuances na personalidade de Spock, como suas emoções sempre prestes a explodir, de maneira exemplar. As cenas de Quinto junto a mãe de Spock, Amanda Greyson (Winona Ryder, em uma quase ponta), são magníficas, mostrando que, de fato, há humanidade naquele vulcano que tanto sofreu em sua infância por sua herança terrestre.
Tecnicamente, o diretor J.J. Abrams se sai de maneira espetacular, trabalhando bem em conjunto com sua equipe, composta quase que completamente por velhos conhecidos dele. Mixando computação gráfica excepcional – vida as batalhas espaciais do filme – com cenários reais muito bem construídos, o cineasta mostra um equilíbrio perfeito entre o uso de efeitos digitais e práticos, resultando em cenas de ação de tirar o fôlego.
Destaco o emocionante prólogo do filme, o space jumping realizado por Kirk, Sulu e um “camisa vermelha” e o clímax da fita, em uma batalha envolvendo três naves. Abrams jamais se deixa levar pelos brinquedos computadorizados, sabendo dosar os efeitos e a humanidade do filme, jamais deixando com que este se torne artificial demais ou apenas mais uma fita recehada de CGI, com as sequências mais movimentadas sendo parte da trama e conseqüências desta, não o contrário.
O cineasta ainda impõe um ótimo clima de urgência às cenas de ação, lembrando até um pouco “Cloverfield – Monstro” por vezes, sendo auxiliado aqui pelo cinematógrafo Daniel Mindel, que colabora com o visual mais limpo proposto pelo diretor, apostando também em tons de iluminação opostos, vide o tom mais sombrio nos ambientes da nave de Nero e o brilho imponente presente na Enterprise, principalmente em sua ponte.
A trilha de Michael Giacchino, colaborador de Abrams em quase todas as suas produções, é linda, ampliando o impacto emocional da fita de maneira exponencial e se utilizando do tema de abertura da série, composto por Alexander Courage, apenas no final, fechando a sensação nostálgica para os fãs. A montagem, feita por Maryann Brandon e Mary Jo Markey, apresenta um pouco de “gordura” na metade do filme que, após sequências alucinantes, acaba perdendo um pouco de ritmo, mas nada sério, considerando que tais cenas mais “calmas” são absolutamente necessárias para a trama.
Claro que existem algumas coincidências um tanto forçadas durante o filme, mas é um problema extremamente bobo e que não incomoda dado o nível de diversão e envolvimento emocional investido naquela história. “Star Trek” é, até agora, o grande blockbuster do ano. Misturando climas emocionais, grandes cenas de ação e personagens cativantes e, algumas vezes, engraçados, o filme cria uma galáxia bem mais perigosa e emocionante que aquela proposta por Roddenberry nos anos 1960 e faz o espectador desejar voltar o mais rápido possível para “onde nenhum homem jamais esteve”.