Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 11 de março de 2009

Watchmen (2009): os fãs podem reclamar, mas o filme é ótimo

“Watchmen”, a HQ roteirizada por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons, tida por muitos como a mais cultuada de todas, finalmente ganha sua versão para as telas. E o diretor Zack Snyder acerta em cheio ao respeitar os fãs, deixando o produto o mais fiel possível à história original.

No ano de 1986, Alan Moore, em parceria com o desenhista Dave Gibbons, publicou a HQ que simplesmente causou uma revolução na chamada “nona arte”. Ela apresentava homens comuns, que à noite saíam para combater o crime, até que uma lei os proíbe de entrar em ação, tornando-os ilegais. Bom, a essa altura de campeonato, é até redundante dizer que estou falando de “Watchmen” e a obra tem uma grande importância no mundo literário. A questão é que, durante anos, se cogitava a ideia de adaptar a obra para os cinemas, mas tal feito era tido como impossível por diversos diretores e fãs, mediante o universo de informações, filosofias e reflexões que ali continham. Nomes como Terry Gilliam, Paul Greengrass e Darren Aronofsky tiveram cotados para assumir a produção, mas foi Zack Snyder (com a moral de seu projeto anterior, “300”, também ter sido uma adaptação de HQ) quem teve a ousadia de assumir o fardo. E ele soube bem o que se fazer: manter a fidelidade acima de tudo, usando os recursos audiovisuais como um espetáculo aos olhos.

Na trama, em 1977 foi aprovada pelo congresso norte-americano a Lei Keene, que proibia as atividades de mascarados no combate ao crime. Isto fez com que vários super-heróis deixassem a carreira. Em 1985, o mundo vive o clima da Guerra Fria, no qual um ataque nuclear pode acontecer a qualquer momento, vindo dos Estados Unidos ou da União Soviética. Neste clima de tensão política, Edward Blake (Jeffrey Dean Morgan), o Comediante, é assassinado. O último herói na ativa sem ter ligações com o governo, Rorschach (Jackie Earle Haley), começa uma investigação e resolve avisar os antigos colegas que talvez a morte do Comediante seja o indício da existência de um assassino de mascarados.

Logo de cara, nos deparamos com uma sequência de deixar o queixo no chão. A cena inicial, envolvendo o assassinato do Comediante, é bem mais violenta do que a retratada só em relances na HQ, e ainda tem o agravante de mostrar tudo nos mínimos detalhes, ao som sereno de “Unforgettable”, clássico de Nat King Cole. Depois, entram os créditos iniciais que é, talvez, o momento onde o diretor melhor deixa sua marca. Ele resume em imagens estáticas (semelhante a um quadro de HQ) boa parte do passado que antecede a trama, em especial os momentos dos “Homens Minuto” (os primeiros heróis a surgirem, na década de 40). Para quem conhece a HQ, são momentos de extremo deleite, e para quem não conhece, são cenas no mínimo curiosas que irão levantar o interesse em conferir mais sobre o mundo complexo da cabeça de Alan Moore.

Depois, segue-se a trama mantendo a cronologia bem semelhante a da história original. Vale frisar: Snyder buscou manter a fidelidade como sua grande prioridade. Muitos diálogos são transpostos idênticos, sem alterar uma vírgula sequer, e o visual dos personagens sofreu o mínimo de alteração possível. Destaque para Rorschach, o baixinho lunático cujas manchas de sua máscara se mexem o tempo todo, que consegue ser sempre perturbador quando está em cena. Dr. Manhattan está impecável, em que sua áurea brilhante e luminosa remete a sua imagem de “semideus”, ficando mais coerente até do que o azul bruto da HQ, visto que ele teve seu corpo todo desintegrado no passado. Visualmente, Ozymandias é o único desfavorecido ao usar uma armadura com mamilos bem ao estilo “Robin dos filmes de Joel Schumacher”, completamente diferente da original, não condizendo nem com a essência do personagem.

Obviamente, algumas mudanças sutis foram feitas para comprimir os milhares de fatos nas já longas 2 horas e 43 minutos. Algumas trocas bem aceitáveis – como a ausência do Capitão Metrópole na formação da equipe na década de 60 – e outras mais sentidas – como a omissão do destino de Hollis Mason, o primeiro Coruja -, além do já tão comentado final modificado. O filme merece elogios pela ousadia do novo final, pois ele não só manteve a idéia original, como apresenta um desenrolar bem mais pé-no-chão e enraizado no contexto. O geral está lá (até o órgão genital do Dr.Manhattan) e ainda tem mais na versão do diretor com quase quatro horas, que será lançada em DVD.

Muitos diziam que para adaptar fielmente “Watchmen” seriam necessários pelo menos três filmes, mas Snyder consegue fazer um trabalho convincente com um só, por mais que a noção espaço-tempo pareça bem encurtada e os fatos aconteçam quase que atropelando um ao outro. Ironicamente, essa ânsia de Snyder em adaptar o máximo de conteúdo possível pode acabar se tornando um dos maiores defeitos. Os que não conhecem a história, provavelmente irão achar o ritmo demasiadamente cansativo perante os diálogos intermináveis e cenas que parecerão encaixadas quase que à força. A sequência de Marte, por exemplo, perdeu toda a sua complexidade, soando quase que desnecessária se tratasse de um roteiro original, e não adaptado.

Em meio a todo o espetáculo visual e efeitos especiais impecáveis, pode-se até dizer que Zack Snyder mantém-se em uma zona de conforto ao seguir uma cronologia já existente, usando e abusando de flashbacks para mostrar as origens dos personagens, exatamente como acontece na HQ. Mesmo assim, o diretor se faz presente ao dar uma dimensão bem maior às cenas de ação, algo que existe em pouquíssima quantidade na HQ, mas é uma vertente necessária ao se tratar de um filme de super-heróis, pois mais anti-heróis que eles sejam. Nas telas, o diretor demonstra habilidade no comando de cenas de luta bem coreografadas, com direito a muita violência, fraturas expostas e muito sangue jorrando. Fato é que seu estilo exageradamente videoclipe continua a incomodar um pouco, assim como acontecera em “300”. Não posso esquecer das cenas de sexo, em que foi dada uma visibilidade um tanto maior do que todos imaginavam. Os marmanjos irão aprovar a “performance” de Malin Akerman nessas horas…

Não é nem preciso dizer que “Watchmen – O Filme” não se trata de um longa para crianças ou pré-adolescentes. O sexo e a violência são o de menos, perante as muitas reflexões da trama, que o roteiro escrito por Alex Tse e David Hayter consegue levar (mesmo que em partes) às telas. O contexto básico sobre a teoria do caos, dos homens comuns cavando a própria cova mediante sua própria futilidade, a “terra de ninguém” chamada Terra estão lá expostas, principalmente através do personagem Comediante. Não basta assistir, é necessário um olhar semiótico para compreender o filme.

Mas, como era de se imaginar, as mensagens nem de longe possuem a mesma complexidade que as páginas impressas, deixando muitos outros fatores (como a influência da mídia na imagem das pessoas, o poder do capital, etc) apenas induzidos devida rapidez dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, por mais que o diretor consiga distribuir quase que igualmente a importância aos personagens principais (o que já é uma missão difícil), não temos a chance de conhecer mais a fundo suas personalidades. São arquétipos tão interessantes, que sentimos que devemos conhecê-los melhor. Por outro lado, o filme dá uma atenção bem maior do que na HQ ao contexto histórico-político da época, o que não deixa de ser um aspecto positivo.

Com a missão de dar o tom certo a cada personagem, os atores pouco conhecidos conseguem se sobressair bem. Jackie Earle Haley (de longe o melhor de todos), por exemplo, dá um show de interpretação ao encarar Rorschach. Com sua voz absurdamente rouca, ele transmite todo o medo que o paranóico personagem provoca, tanto com a máscara como sem ela. Em sua cena final, Jackie é simplesmente genial! Depois dele, o destaque é de Jeffrey Dean Morgan que encarna o sádico Comediante/Edward Blake. O astro não só deu a imagem de arrogante que Blake merece, como transmite a cada fala o misto de ironia e desespero que sente ao tentar encarar a vida como uma piada e simplesmente “dançar conforme a música que toca”. Sempre achei o Comediante bastante semelhante ao Coringa, perante a forma que os dois enxergam a vida, cabendo-os apenas atenuar o caos. Billy Crudup, que dá voz e movimento ao Dr. Manhattan, está eficiente doando uma voz constante e suave ao personagem que vive no tédio, acostumado com a inferioridade dos humanos ao redor.

Patrick Wilson está convincente como o pacato Coruja/Dan Dreiberg, não só pelo visual semelhante ao da HQ, mas pela jeitão de “tiozão frustrado com a vida”. Malin Akerman, na pele da Espectral/Laurie Juspeczyk, o que ela tem de maravilhosa visualmente tem de inexpressiva (na cena de Marte então, nem se fala), se mostrando um ponto fraco do elenco. Mas o personagem mais sacrificado é sem dúvidas Ozymandias/Adrian Veidt, pois além do visual tosco, teve como intérprete o jovem Matthew Goode. Ele até que tenta passar a canastrice que Ozy exige, mas parece ter saído do seriado “Malhação”, ficando difícil engolir que ali está o homem mais inteligente do mundo.

Um aspecto bastante criticado, mas que, pelo menos ao meu ver, foi um ponto alto da adaptação foram as músicas. Desde “Unforgettable” na sequencia inicial, passando por “The Times Are A-Changing”, de Bob Dylan, nos créditos (a letra tem tudo a ver com a proposta do filme); a bela “The Sound of Silence”, de Simon e Garfunkel, para a cena do enterro; a dançante “I´m Your Boogie Man”, de K.C. and The Sunshine Band, para a cena da chegada do Comediante a bordo da nave-coruja; e a frenética “All Along The Watchtower” de Jimi Hendrix; não só combinam com a época em que a trama se passa como complementam suas cenas de maneira admirável. Até mesmo a batidíssima “Hallelujah” pela primeira vez é usada de uma maneira satírica, trazendo humor a uma cena até então “séria”. O ponto fraco vai mesmo para a versão emo de “Desolation Now” que toca nos créditos finais: a banda My Chemical Romance fez o favor de destruir a bela canção de Bob Dylan.

Não restam dúvidas que muitos fãs irão torcer o nariz para o longa, outros não-fãs irão reclamar do ritmo arrastado, muitos irão amar outros irão odiar. “Watchmen – O Filme” funciona bem tanto como adaptação como filme independente, mas vale ressaltar, em nenhum dos dois quesitos é espetacular. Isso porque adaptar a obra de Alan Moore nunca resultaria em algo perfeito. E é inegável o quanto Zack Snyder doou o melhor de si no projeto e o resultado final saiu o melhor do que se pode ver esperar de um projeto complicado como esse. Por isso, ele merece aplausos e talvez daqui uma década ele seja reconhecido por isso. Afinal, como diz o Comediante, tudo é uma piada…

Thiago Sampaio
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