Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 10 de março de 2009

Watchmen (2009): o cinema de HQs mostra sua maturidade

Jogando tons de cinza em um filão praticamente dominado pelo maniqueísmo que é o das versões cinematográficas de super-heróis, “Watchmen - O Filme” é um longa que veio para revolucionar o seu gênero, logrando êxito nisso, embora não seja uma produção desprovida de defeitos.

“Chove para o justo e para o injusto igualmente. Ele é um pouco dos dois”. Assim, a personagem Sally “Espectral” Júpiter (Carla Gugino) descreve o seu colega de profissão, o “herói” Edward Blake, conhecido como Comediante. A frase pode ser aplicada a quase todas as figuras que vemos em cena neste “Watchmen – O Filme”.

O filme é uma adaptação para o cinema da graphic novel homônima, escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons. A história se passa em um universo alternativo, no qual a interferência de super-heróis gerou um planeta diferente do qual conhecemos, com Richard Nixon eleito presidente dos EUA pela quinta vez, basicamente rasgando a Constituição de seu país, ao se livrar de problemas políticos com a ajuda de alguns fantasiados.

Após seu período de apogeu, os heróis mascarados foram postos fora-da-lei, com os dois únicos ainda na ativa legalmente sendo o já citado Edward “Comediante” Blake (Jeffrey Dean Morgan) e o praticamente onipotente Dr. Manhattan (Billy Crudup), cuja presença é a única coisa que impede que ecloda a Terceira Guerra Mundial entre os EUA e a União Soviética. Após o assassinato de Blake, Rorschach (Jackie Earle Haley), um paranóico e ilegal vingador mascarado ainda em campo, começa a investigar sua teoria de que a morte do Comediante fora o primeiro ataque contra os antigos heróis.

Assim, ele começa a alertar seus antigos aliados, como o pacato Dan “Coruja II” Dreiberg (Patrick Wilson), o rico industrial Adrian “Ozymandias” Veidt (Matthew Goode) e a bela Laurie “Espectral II” Júpiter (Malin Akerman), que tem um relacionamento com o Dr. Manhattan. A partir daí, começamos a descobrir mais sobre as intrincadas ligações entre esses vigilantes mascarados, suas falhas, vitórias e tristezas, bem como uma trama que pode mudar a face da Terra para sempre, com resultados potencialmente apocalípticos.

O roteiro da dupla Hayter e Tse condensa as 12 edições originais de “Watchmen”, conservando o tronco principal da narrativa, que é a possível conspiração por trás da morte do Comediante. Conseguir fazer isso sem desintegrar o peso da história foi um feito incrível. No entanto, o público médio terá problemas com o ritmo fílmico um tanto quanto irregular que resultou disso. Aqueles acostumados com blockbusters de férias, com cenas de ação a cada 10 minutos, irão se frustrar com os diálogos complexos da história, já que se trata de um filme guiado pelos seus personagens e seus relacionamentos, não pela pancadaria e efeitos especiais que, apesar de presentes e decisivos, não são o ponto principal do longa.

Assim, mesmo contando com ótimos efeitos visuais, quem realmente ficou com o encargo de segurar a produção foram os atores. O elenco, como um todo, esteve à altura do desafio, com algumas boas atuações, mas alguns pequenos deslizes e destaques. Malin Akerman se saiu relativamente bem nas cenas mais “pé-no-chão” da fita, tendo uma boa química com Patrick Wilson e Carla Gugino, mas não convence muito nas sequências com efeitos especiais envolvidos, talvez por inexperiência ao trabalhar com fundo azul. Matthew Goode faz um bom trabalho retratando a solidão de Adrien Veidt e seu amor pela humanidade, mas não convence muito fisicamente como Ozymandias, que deveria representar o ápice do corpo humano.

Patrick Wilson faz um ótimo trabalho vivendo o reprimido e pacato Dan Dreiberg, que luta para viver uma vida comum a despeito de seu passado de aventuras. Seus diálogos, nos quais tenta disfarçar as saudades pelo passado glorioso, são pontuados com por dose de amargura pelo fim daqueles dias.

Do lado oposto do espectro narrativo, Billy Crudup faz se sai muito bem na composição vocal do poderoso Dr. Manhattan, em uma bela colaboração com a criação azulada dos responsáveis pelos efeitos especiais. Mesmo com pouco tempo de tela como o humano Jon Osterman, antiga persona do (semi?) deus atômico, Crudup consegue criar um personagem condizente com seu alter-ego superpoderoso. Aliás, o visual deste, levemente alterado em relação ao original, é espetacular, dando o toque de divindade perfeito ao bom doutor.

Jeffrey Dean Morgan encarnou com convicção o manto do Comediante, nos entregando uma figura extremamente dúbia, um homem convicto das suas falhas como ser humano e que enxerga a ironia presente entre a moralidade humana e a realidade presente. Morgan mostra o seu personagem caminhando nessa linha, capaz de atos atrozes, mas também com uma ternura inata.

Mas quem realmente rouba a cena é Jackie Earle Haley, que interpreta com vigor a trágica figura de Rorschach. A despeito de seus atos brutais em nome de sua visão direitista de “justiça”, Haley realmente cativa a platéia, já que suas ações violentas não encontram justificativa, mas fundamentações em seus traumas de infância e na barbárie por ele presenciada em sua vida. Tais marcas emocionais são muito bem retratadas pelo ator, principalmente na já clássica cena de seu diálogo com o psicólogo. Não seria exagero comparar seu trabalho com aquele feito por Heath Ledger em “Batman – O Cavaleiro das Trevas”.

Zack Snyder foi extremamente corajoso em assumir um projeto tão ambicioso como “Watchmen” e não fez feio em sua empreitada, realizando o melhor possível com um material extremamente complicado de ser levado às telas. Seu apurado senso visual consegue transpor detalhes da obra original para a tela de modo extremamente orgânico. Colaborando com o designer de produção Alex McDowell e o cinematógrafo Larry Fong, Snyder cria um visual único para a fita, reconhecendo que esta precisa realmente de uma base na realidade, mas sem nunca esquecer as raízes desta na nona arte, em um equilíbrio raro de ser atingido.

A interpretação estética do cineasta de diversos ícones históricos, mostrando-os não de modo 100% fiel, mas de modo mais cartunesco, acentuando suas características mais famosas, se mostra acertada, apelando diretamente para a memória visual do público. Com a reunião de todos esses elementos, o diretor cria cenas icônicas, como a maravilhosa sequência de créditos da película, o beijo em meio à explosão nuclear e a passagem que retrata a origem do Dr. Manhattan.

A paixão de Snyder por cenas de ação em câmera lenta não incomoda, chegando a dar um ar de graphic novel a tais sequências, retratando-as quase como se fossem quadrinhos na tela, reverenciando a mídia original da obra. No entanto, o cineasta escorrega ao exagerar na violência, que, em boa parte, era apenas sugerida na graphic novel. Já no filme, o diretor carrega neste aspecto, mostrando fraturas expostas e sangue em demasia.

Temos duas faces a serem analisadas quanto à trilha sonora do filme. Primeiro, as maravilhosas músicas escolhidas por Snyder para pontuar diversos pontos da narrativa. Quase todas funcionam muito bem, com destaque especial para “The Times Are A-Changing” e “All Along The Watchtower”. No entanto, achei a colocação de “Hallelujah” extremamente inadequada, quase zombeteira, sem contar a péssima versão de “Desolation Row” feita pela banda My Chemical Romance que, ainda bem, só toca nos créditos finais. Já a trilha sonora composta por Tyler Bates é efetiva, mas empalidece perante as canções colocadas.

A trama exige muito do espectador e só pode ser apreciada em sua plenitude por aqueles que possuam um certo conhecimento de História e que se deixem levar pelo filme, não sendo mesmo um mero passatempo, tratando o espectador como um ser inteligente. “Watchmen” possui seus defeitos. É um filme longo, com ritmo alternante e contendo temas difíceis de serem digeridos, sendo tão pesado e denso quanto a obra original. Fãs podem reclamar de algumas modificações feitas, quase todas favorecendo a transposição da graphic novel para o cinema. Por sua vez, cinéfilos mais retrógados (para não dizer preconceituosos) podem afirmar que a história é ambiciosa e complexa demais para um “filme de heróis”.

Ora, os tempos mudam e as histórias, sejam de qual “gênero” elas forem, também amadurecem. Assim como a nona arte abraçou sua revolução em 1986 com “Watchmen” e “Batman – The Dark Knight Returns”, as adaptações dos quadrinhos para o cinema amadureceram com “Watchmen” e “Batman – O Cavaleiro das Trevas”. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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