Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Coraline e o Mundo Secreto

Assim como os magos da Pixar e o japonês Hayao Miyazaki, Henry Selick é um dos poucos verdadeiros artistas no mundo do cinema animado. Este incrível “Coraline e o Mundo Secreto” é a prova disso e também a obra-prima do cineasta.

“Coraline” é uma jóia escondida da literatura. Mesmo que tenha sido lançada em diversas formas na mídia (livro, graphic novel…), esta obra de Neil Gaiman permaneceu longe dos olhos do grande público por muito tempo, com seu sucesso ficando restrito aos fãs da obra de Gaiman– pelo menos aqui no Brasil. Esta fábula infantil, meio moderna, meio sombria, não demoraria a chegar aos cinemas e veio de forma assombrosa.

Poucos teriam a capacidade de levar às telas tão bem as palavras e intenções de Gaiman como Henry Selick, a mente por trás de fitas animadas fabulosas como “James e o Pêssego Gigante” e “O Estranho Mundo de Jack”. Adepto da antiga técnica da animação em stop-motion (os famigerados “bonequinhos”), Selick não apenas adaptou “Coraline” para o cinema, mas traduziu a obra para uma linguagem cinematográfica ao escrever e dirigir sua versão fílmica, sem esta perder nada do lirismo da versão original. Da colaboração dessas duas mentes geniais em seus respectivos campos nasceu esta belíssima fita intitulada “Coraline e o Mundo Secreto”.

A personagem-título é uma menina comum de classe média americana. Seus pais são escritores workaholicks e a família acabou de se mudar para um estranho condomínio chamado Palácio Cor-de-Rosa. Sem seus amigos, se sentindo abandonada pelos pais e cada vez mais entediada, Coraline começa uma relação de quase-amizade com o neto de sua senhoria, o estranho Wybie, quase sempre acompanhado de um gato preto bastante blasé, além de conhecer seus excêntricos vizinhos, o Sr. Bobinski, sempre treinando seus camundongos adestrados e as atrizes aposentadas Spink e Forcible.

Certo dia, enquanto contava as portas e janelas de sua nova casa, a jovem deu de encontro com uma portinhola minúscula, murada, a qual só é aberta por uma chave cuja ponta tem a forma de um botão. Durante a noite, Coraline acaba transportada para outro mundo, no qual seus pais são atenciosos e coisas fantásticas são possíveis. Lá, as pessoas são iguais às que ela conhece, exceto que possuem botões no lugar de olhos. Cada vez mais tentada a ficar por lá, a jovem vai descobrir da pior maneira possível que nem tudo neste lugar maravilhoso é tão bom assim…

De alguns anos pra cá, vemos que a animação vem se tornando cada vez mais como uma forma de arte mais reconhecida pelos antes estóicos críticos. Graças às obras de Hayao Miyazaki e das mentes por trás da Pixar, esta forma de cinema vem saindo, mesmo que de maneira tímida, da condição de “filminhos para crianças” na cabeça dos críticos. Não é exagero meu dizer que “Coraline e o Mundo Secreto” está nesse mesmo nível, se não mais alto.

Algumas peças promocionais chamavam a fita de “O Maior Filme Pequeno Já Feito”, em um trocadilho com a escala dos bonecos e cenários. Acredite, tal frase tem outro sentido. Fora dos grandes estúdios de animação, o longa é o mais bonito que já vi em muito tempo, mas tendo mais conteúdo que várias obras desses conglomerados juntos. Atiçando a curiosidade do espectador logo na maravilhosa seqüência de abertura, com poucos segundos de projeção esquecemos que estamos vendo meros modelos humanóides e começamos a nos relacionar com os personagens em cena como se de carne e osso fossem.

As figuras possuem não só expressões, mas carisma e personalidades próprias, tudo isso graças à fabulosa interação entre o trabalho da equipe de Selick e o dos dubladores (sejam os originais ou os nacionais). Palmas para os operadores dessas figuras, que deram a elas uma naturalidade e uma fluidez de movimento surpreendente. Os designers dos bonecos trabalharam em uma tênue linha, dando feições caricaturais aos personagens humanos (vide o desvio de coluna do pai ou os vizinhos de Coraline), mas sem alienar a audiência.

Tal fato é algo importantíssimo, já que é vital para o filme que a audiência se relacione com aqueles personagens e suas dificuldades, principalmente com Coraline, cujos problemas mundanos são o mote do longa. Note que o desenho dela e o de sua mãe são os menos caricaturais de toda a produção, justamente para facilitar essa identificação. Quanto aos personagens não humanos, estes são sempre interessantes de se ver, mesmo (e principalmente) os mais macabros, como a Bela Dama e suas feições aracnídeas.

Além disso, a produção possui uma dos mais brilhantes execuções de direção de arte que já vi em tela. As sutis diferenças entre as duas versões do Palácio Cor-de-Rosa, os ambientes externos, o fabuloso jardim do “outro pai”… tudo é simplesmente de encher os olhos e de fazer corar de inveja qualquer filme de Tim Burton (uma das grandes referências de Selick, vide a colaboração dos dois em “O Estranho Mundo de Jack”).

Outro aspecto simplesmente genial do filme é sua trilha sonora, que é quase que costurada à narrativa, fora que as composições de Bruno Coulais e da banda They Might Be Giants. A fita possui apenas uma “canção de personagem” e, mesmo essa, possui uma razão de ser e uma função na trama.

Como cineasta, Selick também não decepciona, apostando em planos pouco convencionais (vide a seqüência do jantar com o “trem de molho”) e mantendo a narrativa sempre interessante, sempre de maneira natural e nunca recorrendo a artifícios baratos para empolgar a platéia, sempre acreditando no potencial da própria película. É sempre bom ver um diretor fazendo um trabalho no qual realmente acredita e isso se manifesta em cada quadro do longa.

“Coraline e o Mundo Secreto” é um filme extremamente recomendado para pessoas de quase todas as idades. Digo “quase”, pois não é uma fita que eu indicaria para crianças muito pequenas, já que algumas partes podem ser realmente assustadoras para elas. De qualquer forma, trata-se de uma verdadeira obra de arte animada e um filme realmente imperdível.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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