Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Leitor, O

Com belas atuações e uma parte técnica impecável, "O Leitor" é um belíssimo filme que joga um olhar crítico aos anos seguintes à Segunda Guerra na Alemanha.

"O que você faria?". Esta é a pergunta-chave na trama deste ótimo "O Leitor". Contado de modo não-linear, sempre pelo ponto de vista de Michael Berg (David Kross e Ralph Fiennes), o filme enfoca sua relação de amor e culpa com Hanna Schimitz (Kate Winslet). Os dois se conhecem no meio da década de 1950 quando ele, ainda com 15 anos, passa mal em um bonde, no qual ela trabalha como trocadora. Ela o ajuda e, algum tempo depois, o jovem a procura para agradecer o gesto.

Neste novo encontro, uma forte atração surge entre eles, que começam um relacionamento, a princípio puramente sexual, tanto que um não sabe o nome do outro até dias após o começo da relação. Com o tempo, o casal começa a ficar mais íntimo, com o amor entre os dois florescendo. Michael começa a ler diversos livros para Hanna, a pedido desta, algo que se torna um hábito antes da relação sexual. A natureza da relação vai se modificando, ficando cada vez mais amorosa, até que, um dia, Hanna desaparece sem motivo aparente.

Alguns anos depois, Micheal está se formando em Direito e participando de um grupo de discussão, o qual é levado pelo professor para acompanhar o julgamento de algumas mulheres que trabalharam como guardas nos campos de concentração nazistas, em um incidente que vitimou mais de 300 prisioneiras, entre elas crianças. Para a surpresa do jovem, Hanna é uma das rés no processo. No entanto, ele mesmo terá de arcar com um dilema, quando descobre possuir uma informação vital para o julgamento.

Paralelamente, vemos como um Michael mais velho lida com as conseqüências de suas escolhas e como elas lhe afetaram psicologicamente. Fechado e sem conseguir se relacionar de maneira muito profunda com outras pessoas – mesmo com sua filha – ele se tornou um homem isolado e melancólico, embora bem sucedido profissionalmente. Este triste retrato é feito em uma composição bastante econômica por Ralph Fiennes, que encarna o personagem a partir de sua fase balzaquiana, sempre com sensibilidade e sem gestos exagerados.

A performace de Fiennes pode ser descrita por olhos mais desatentos como um tanto quanto esquemática e fria, principalmente em comparação com a apaixonada persona que Michael foi durante sua juventude, em uma comovente e poderosa interpretação de David Kross, mas os atores não estão vivendo os mesmos personagens. Ora, a mudança de intérprete após o julgamento de Hanna não é uma mera conveniência para o filme. Michael realmente se tornou outra pessoa após aqueles eventos, demorando muito a finalmente fazer as pazes com o seu passado.

No entanto, é Kate Winslet que realmente desequilibra o filme com uma atuação fantástica como Hanna. Vivendo a personagem ao longo de 30 anos de vida desta, a atriz transmite todo o sentimento de culpa e a carga emocional acumulada pela ex-guarda com pequenos gestos e olhares. Uma cena em especial que me chamou a atenção fora a da igreja, com o choro simples e nada exagerado da atriz ao ouvir o coral. É uma seqüência bastante singela, mas bastante eficaz em revelar traços da personalidade daquela personagem.

Louve-se aqui também o ótimo trabalho de maquiagem feito na atriz para retratar a passagem dos anos, feito de maneira discreta e sem tirar a atenção da atuação de Winslet, o que seria um pecado. Ao contrário do que afirmou, brincando, o comediante e amigo da atriz Ricky Gervais, quaisquer prêmios que ela venha a receber por seu trabalho aqui são absolutamente merecidos e não apenas entregues por este ser um "filme sobre o holocausto".

É fácil para qualquer um de nós, graças ao distanciamento geográfico e cronológico, vermos aqueles que trabalhavam para o regime Nazista como monstros desalmados. Nem todos o eram. A discussão em voga no filme trata mais da omissão. Ora, toda uma nação sabia que crueldades eram cometidas contra aqueles que o Reich alemão julgava inferiores, mas ficaram inertes, impassíveis. Quando a guerra acabou e Hitler e seus comparsas caíram, todos procuravam bodes expiatórios para culpar pela atrocidade hoje conhecida como holocausto. Era como se o país dissesse "não fomos nós, mas eles!".

Em dado ponto do filme, um estudante de direito afirma que, se colocassem uma arma em sua mão, ele matava as acusadas. Através desse grupo de discussão, liderado pelo sempre genial Bruno Ganz (que, ironicamente, viveu o papel-título em "A Queda – As Últimas Horas de Hitler") como o professor Rohl, temas como legalidade, moralidade e o próprio sentimento de culpa do povo alemão são tocados de maneira brilhante, em um tom totalmente fora do maniqueísmo tão costumeiro em filmes sobre o nazismo.

Não apenas um ótimo diretor de atores, o cineasta Stephen Daldry faz um retrato completo de um período de vergonha da história alemã. Em planos elegantes que mostram locais totalmente diversificados como o apartamento de Hanna, o tribunal ou a universidade na qual Michael estuda, o cineasta extrai sempre o máximo de cada cena, devendo se destacar a visita do protagonista aos campos de concentração e sua constatação dos verdadeiros horrores ali cometidos.

Cenas mais singelas, como o estranho início do relacionamento entre Michael e Hanna possuem o mesmo peso narrativo do relato dos horrores cometidos na igreja durante a guerra, pois possuem impactos pessoais, com a força destes não importando. A potência do efeito desses eventos a terceiros não importa, ela é a mesma para aqueles que se recordam deles e isto é algo que ecoa bastante no trabalho de direção do cineasta.

Outro ponto da película a ser louvado é sua belíssima direção de arte, principalmente nas cenas que retratam a década de 1950 no pós-guerra, com cenários belíssimos, sempre retratados de maneira plasticamente perfeita e melancólica pelos diretores de fotografia Roger Deakins e Chris Menges.

Só é realmente uma pena que o filme seja falado em inglês. Nenhum demérito em relação a isto, mas a experiência seria muito mais interessante se os diálogos fossem em alemão, já que idiomas realmente fazem parte da história (vida as cenas em que Michael fala à Hanna que estuda grego e latim). No entanto, as poderosas atuações do elenco e a sensibilidade com a qual Daldry e o roteirista David Hare trataram o livro do escritor alemão Bernhard Schlink e a própria história da geração do autor compensam qualquer coisa.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre